Thierry Meyssan

Thierry Meyssan

Editor-chefe Réseau Voltaire


Os Estados Unidos não são a hiper potência que sonhavam ser. Eles sofreram uma terrível derrota militar na Síria junto com uma centena de estados aliados. Mesmo se estes últimos se continuam a embalar com ilusões, chegou o momento das contas. Para sobreviver, Washington não tem outra escolha senão a de se aliar com um dos seus adversários. A questão é, a Rússia ou a China?


Não se pode viver em sociedade sem regras. Se esta forem injustas, revoltamo-nos e mudamo-las. É inevitável porque aquilo que parecia justo num determinado momento já não o será forçosamente num outro. Seja como for, temos necessidade de uma ordem, sem a qual todos se tornam inimigos uns dos outros. Aquilo que é verdadeiro para os homens também o é para os povos.

Em 1945, a Conferência de Ialta lançou as bases de uma partilha do mundo em zonas de influência dos três grandes vencedores da Segunda Guerra Mundial: os EUA, o Reino Unido e sobretudo a União Soviética. Durante toda a Guerra Fria, cada campo atacava publicamente o outro, mas eles entenderam-se sempre por trás da cortina. A investigação histórica mostrou que, se a todo o instante o acordo teria podido virar em confronto, as invectivas eram as mais das vezes destinadas a solidificar cada campo do que a ferir o adversário/parceiro.

Este sistema jamais foi colocado em questão. Ele perdurou até ao colapso da URSS, em 1991.

Desde então, os Estados Unidos pretenderam ser a hiper potência capaz de organizar o mundo. Não o conseguiram. Em inúmeras ocasiões, a China e a Rússia —herdeira da URSS— tentaram virar as cartas. Não o conseguiram de forma alguma, mas não cessaram de progredir. O Reino Unido, que havia aderido à União Europeia durante a Guerra Fria, saiu dela a fim de concorrer de novo ("Global Britain"). Já não há pois três, mas quatro potências que ambicionam partilhar o mundo entre si.

No seguimento do período de confusão dos anos 1991-2021, da "Tempestade do Deserto" à "Remodelagem do Médio-Oriente Alargado", a ambição dos Estados Unidos espatifou-se na Síria. Foram-lhe necessários vários anos para admitir a sua derrota. As Forças Armadas russas dispõem agora de armas muito mais avançadas e o Exército chinês de um pessoal muito mais qualificado. Para Washington é urgente tomar nota da realidade e aceitar um acordo, a mingua do qual perderá tudo. Já não se trata mais de calcular aquilo que é o melhor para si, mas de empreender tudo para sobreviver.

Os aliados dos Estados Unidos não perceberam a importância da catástrofe militar na Síria. Eles persistem em mentir a si próprios e em tratar este conflito maior, implicando ainda mais estados do que a Segunda Guerra Mundial, como uma guerra "civil" num pequeno país distante. Será, portanto, particularmente difícil para eles curvarem-se perante os recuos em catadupa de Washington.

Uma Ialta 2 é a última chance para o Reino Unido. O antigo "Império onde o sol nunca se punha" já não dispõe dos meios militares que correspondam às suas ambições. Mas conserva um saber fazer excepcional e um cinismo a toda a prova (a "Pérfida Albião"). Ele participará seja em que mercado for, desde que isso lhe proporcione um rendimento. Ele desliza atrás dos passos da Administração dos EUA, aproveitando-se de sua cultura comum e de sólidas redes de influência. A Pilgrim's Society (Associação dos Pais Peregrinos), que esteve muito presente durante a primeira Administração Obama, está de retorno à Casa Branca.

A Rússia não é a URSS, da qual poucos dirigentes eram russos. Ela não busca fazer triunfar uma ideologia. A sua política exterior não é, de forma alguma, baseada numa nebulosa teoria "geopolítica", mas sobre a projecção da sua forte personalidade.

A China regressa de um passado longo sem nada dever a ninguém e sobretudo àqueles que a esmagaram no início do século XX. Ela pensa, acima de tudo, recuperar a sua área de influência regional e comerciar com o resto do mundo. Ela sabe esperar, mas não está pronta para qualquer concessão. Hoje, é um aliado da Rússia, mas não esqueceu o papel desta durante sua colonização e não abandonou as suas pretensões territoriais sobre a Sibéria oriental.

Em resumo, nenhuma das quatro grandes potências age segundo a mesma lógica e persegue os mesmos objectivos. Isso torna mais fácil encontrar um possível acordo, mas mais difícil em mantê-lo.

O Pentágono designou um grupo de trabalho encarregado de reflectir sobre as opções possíveis face à China (a China Task Force do Departamento da Defesa), que ele teme mais do que a Rússia. Com efeito, tudo aquilo que Pequim venha a recuperar da sua zona de influência regional, irá fazê-lo em detrimento das posições de Washington na Ásia. Por seu lado, a Casa Branca organizou um grupo de trabalho ultra-secreto encarregado de encarar as novas ordens possíveis. O primeiro grupo entregou o seu relatório que foi classificado. Ninguém sabe se o segundo terminou ou não o seus trabalhos.

É este grupo que vela pelo destino dos Estados Unidos. A sua composição é secreta. Os seus membros são com toda a evidência mais poderosos que um presidente senil. Ele joga um papel de decisão central comparável ao do Grupo de Desenvolvimento da Política Energética Nacional (NEPD) durante a Administração Bush-Cheney.

Nada permite de momento saber se este grupo representa objectivos políticos e/ou interesses financeiros. Seja como for, é claro que a finança global influencia simultaneamente a NATO e a Casa Branca. Ela não busca mudar as alianças, mas mais em dispor das informações necessárias para se adaptar na sombra a essas mudanças e preservar a sua posição social.

As viagens dos diferentes enviados especiais de Washington levam a pensar que a Administração Biden já escolheu restaurar o duopólio da Guerra Fria. É para Washington o único meio de evitar uma guerra contra uma aliança russo-chinesa à qual provavelmente não sobreviveria.

Esta opção implica que Washington se comprometa a defender a integridade da Sibéria russa face à China e que Moscovo  reciprocamente defenda as bases e possessões dos EUA situadas na zona de influência chinesa.

Esta opção pressupõe que Washington reconheça a proeminência económica chinesa no mundo. Mas deixa-lhe a possibilidade de conter politicamente "o Império do Meio" a fim de que nunca se torne uma potência mundial no pleno sentido do termo.

O único verdadeiro perdedor seria a China, sempre privada de uma parte da sua zona de influência e confinada politicamente. No entanto, ela seria apaziguada, de momento, deixando-a recuperar Taiwan que o think-tank do Pentágono considera desde há uma semana como "não-essencial" para os EUA.

É preciso perceber bem que o principal obstáculo para os EUA é mental. Desde 2001, Washington está convencido que a instabilidade joga a seu favor. É por isso que instrumentaliza sem complexos os jihadistas por todo o mundo, aplicando assim a estratégia Rumsfeld/Cebrowski. Porém, o conceito de um acordo do tipo Ialta é, pelo contrário, uma aposta na estabilidade; o que Moscovo não parou de pregar desde há duas décadas.

O presidente Biden previu reunir-se com os seus parceiros britânicos para reforçar a sua aliança dentro do modelo da Carta do Atlântico; depois reunir os seus principais aliados para o G7: e finalmente encontrar-se com os seus aliados militares e civis da NATO e da União Europeia. Só depois de se assegurar da fidelidade de todos, é que ele se encontrará com o seu homólogo russo, Vladimir Putin, em Genebra, em 16 de Junho.

Tudo isto é paradoxal, porque equivale a obrigar Administração Biden a fazer exactamente aquilo que se impediu a Administração Trump de realizar. Quatro anos foram perdidos para nada.

(Continua…)

Fonte: Rede Voltaire

Imagen de capa: Conferência de Ialta, imagem de domínio público.

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