Por James ONeill


Um grande número de publicações online argumentam que a guerra na Ucrânia marcou o fim da era dominada pelo poder ocidental. Há declarações afirmando que o conflito militar foi um acontecimento marcante de ruptura com o passado e o início de uma nova realidade geopolítica. É uma tese que vale a pena examinar com algum pormenor porque, se for verdade, marca o fim de um longo período de domínio ocidental da ordem mundial.

O conflito na Ucrânia é muito mais amplo do que uma disputa relativamente estreita entre dois vizinhos. A origem do conflito é completamente negligenciada nos relatórios ocidentais sobre o conflito. Há oito anos atrás, o governo legitimamente eleito da Ucrânia foi derrubado num golpe de Estado apoiado pelos americanos. O seu presidente foi forçado ao exílio e foi substituído por um regime de natureza francamente fascista.

Esta situação não foi aceite nem pela península da Crimeia nem pelas duas províncias orientais do Donbass. A Crimeia realizou uma votação e a esmagadora maioria da população optou por deixar a Ucrânia e regressar à Rússia. A palavra "regresso" é a chave. A Crimeia foi presenteada pelo antigo presidente soviético Khrushchev em 1954, sem que os desejos da população tivessem sido consultados. Há centenas de anos que a Crimea fazia parte da Rússia. Os britânicos (e australianos) tinham aí travado uma guerra na década de 1850.

A guerra da Crimeia foi uma guerra contra a Rússia e ninguém a considerava como o contrário. O regresso da Crimeia à Rússia seguiu-se a uma votação democrática que nunca foi aceite pelo Ocidente. A comparação entre o que aconteceu na Crimeia e o que aconteceu no território separatista do Kosovo, proveniente da Sérvia, é muito reveladora. Esta última foi aceite pelas potências ocidentais e o Kosovo é agora uma importante base militar dos Estados Unidos.

É igualmente negligenciado pelos meios de comunicação ocidentais que o desmembramento do Donbass nunca foi aceite pelo governo ucraniano. Nos últimos oito anos, travaram uma guerra contra as duas regiões separatistas. Pelo menos 16.000 pessoas foram mortas e mais de um milhão forçadas ao exílio.

Esta história é completamente ignorada pelos media ocidentais que trataram a intervenção russa em fevereiro de 2022 como uma "invasão" em vez de uma intervenção que impediu uma invasão ucraniana planeada que teria sem dúvida matado mais milhares de pessoas.

A reacção ocidental à intervenção russa na guerra é muito reveladora. Por toda a sua professada crença na "ordem internacional baseada em regras", não impediu as potências ocidentais de confiscar 300 mil milhões de dólares de bens russos detidos no estrangeiro. Não têm qualquer intenção de alguma vez devolver este dinheiro.

As questões maiores que estão em jogo levantadas pela intervenção russa no Donbass foram destacadas pelo ministro russo dos negócios estrangeiros, Sergei Lavrov, numa entrevista que deu aos meios de comunicação russos na semana passada. Lavrov disse que "a operação militar especial visa pôr fim às expansões desmedidas e ao rumo desmedido para o domínio total dos Estados Unidos e de outros estados ocidentais sob o seu comando na arena internacional".

Lavrov também chamou a atenção para o facto de que os Estados Unidos têm vindo a desenvolver armas biológicas em múltiplas bases na Ucrânia. É impossível conceber uma explicação ingénua para estas bases. Destinavam-se claramente a desenvolver armas biológicas para utilização contra a Rússia. No entanto, a existência destas instalações tem sido completamente ignorada pelos meios de comunicação ocidentais. Em vez disso, promoveram o medo mítico de que a Rússia pudesse utilizar armas químicas no seu conflito com a Ucrânia. A hipocrisia contida nesta afirmação é de arrepiar.

Os meios de comunicação ocidentais também ignoram o facto de que a Rússia não está sozinha nas suas preocupações. É apoiada não só pela China e pela Índia, mas pela grande maioria do chamado mundo em desenvolvimento que se recusa a aceitar que o Ocidente continue o seu papel como determinantes do que está certo e errado em todo o mundo.

O que estamos de facto a testemunhar agora é uma rejeição por parte da maioria das nações do mundo da era da dominação dos Estados Unidos. Parte desta rejeição é demonstrada por uma utilização crescente de outras moedas que não o dólar dos Estados Unidos para o comércio internacional. Isto é extremamente significativo. Os Estados Unidos têm utilizado o papel do dólar como o principal veículo para o seu controlo das nações. Essa era está agora a chegar rapidamente ao fim.

A Europa cortando os seus laços com a Rússia é um exemplo de um exercício completamente autodestrutivo. A Europa confia na Rússia para pelo menos 40% das suas necessidades energéticas. Quanto tempo durará a antipatia europeia em relação à Rússia à medida que as suas indústrias se fecharem e os seus cidadãos congelarem do frio, é uma questão em aberto. Alguns países europeus, como a Hungria, rejeitaram esta política manifestamente egoísta e reforçaram as suas relações com a Rússia. Outros, como a Polónia, persistem na sua forma manifestamente auto-suficiente.

A mudança tectónica que está agora a ocorrer nas relações da Rússia com o Ocidente foi recentemente delineada numa entrevista dada pelo economista da UEE, Sergey Glazyev. Nessa entrevista que Glazyev concedeu recentemente ao jornalista Pepe Escobar, ele delineou a evolução de uma nova ordem financeira global que está a substituir o sistema baseado no dólar dos Estados Unidos.

Glazyev deixa claro que o novo sistema de pagamentos não baseados em dólares tem o objectivo explícito de pôr fim ao papel do dólar no apoio ao imperialismo da moeda ocidental. A guerra na Ucrânia irá acelerar estes desenvolvimentos. É pouco provável que os Estados Unidos aceitem passivamente a desvalorização do papel do dólar, e a sua reacção a esta evolução representa ameaças adicionais para o mundo.

O longo discurso de Putin de 21 de fevereiro de 2022 deixou claro que a Rússia está perfeitamente consciente dos riscos. Esse discurso reconheceu a realidade exposta por Fyodor Lukyanov num importante artigo que ele escreveu a 13 de abril de 2022 "Old Thinking For Our Country And The World" e publicado em Russian Global Affairs. Lukyanov disse "sublinhemos que a actual crise mundial não foi promovida pela operação militar especial na Ucrânia". Foi desovada há muito tempo pela teimosa relutância dos líderes da ordem liberal em renunciar aos privilégios que ganharam após a Guerra Fria".

É este mundo que está agora a mudar e muito rapidamente. Os BRICS e a SCO estão a liderar essas mudanças. A questão é se a transição pode ser alcançada pacificamente, ou se os Estados Unidos irão iniciar outra guerra numa tentativa vã de recuperar o seu próprio papel como potência dominante mundial.

Fonte: New Easten Outlook

Imagem de capa por karllehenbauer sob licança CC BY 2.0.


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