Para muitos que têm as suas raízes na Jugoslávia socialista, a 'Yugo-nostalgia’ não é apenas sobre como eles ou suas famílias viviam, mas sobre a vida que querem viver agora


Por Filip Balunović

O arquitecto Mirza Vranjaković tem dois quadros na parede do seu escritório no bairro abastado de Charlottenburg em Berlim.

O primeiro diz 'A bas le caviar, vive le kebab' ['Abaixo o caviar, viva o kebab'], o slogan rabiscado em edifícios parisienses durante os protestos anti-establishment dos Coletes Amarelos, que varreu a França de Emmanuel Macron em 2018.

A outra é uma fotografia de Josip Broz Tito, uniformado e fumando, o revolucionário e líder da Jugoslávia socialista de 1945 até sua morte em 1980.

Gabinete de Mirza Vranjaković. Foto: Mirza Vranjаković

"Uma vez, o meu chefe entrou no escritório e ficou visivelmente chocado ao ver a foto de Tito", disse Vranjković. "Ele perguntou: 'Você tem uma foto de um ditador?'. 'Er bleibt' - 'Ele fica'."

Aos 31 anos, Vranjakovic não tem memória directa do líder da resistência partizana que forjou um Estado socialista multi-étnico a partir das ruínas da Segunda Guerra Mundial e caminharia no palco da Guerra Fria como co-fundador do Movimento dos Não-Alinhados.

Nem a Jugoslávia em que Vranjaković nasceu em 1988 durou mais do que alguns anos antes que o nacionalismo, a crise económica e as areias movediças da geopolítica contribuíssem para destruí-la, matando cerca de 125.000 pessoas na década seguinte e espalhando centenas de milhares mais por todo o mundo.

Tito na imaguração do caminho de ferro Banja Luka-Doboj.
Foto: Arquivo do Museu da Jugoslávia

Então, por quê a foto do Tito?

"Eu queria mostrar a minha ligação ideológica", disse Vranjaković, cujos óculos redondos, barba e longos cabelos castanhos são mais Woodstock do que Novi Pazar, a cidade no sudoeste da antiga Sérvia jugoslava onde ele cresceu.

"Para mim, esta imagem é importante porque nasci na Jugoslávia, num sistema que representava uma alternativa ao capitalismo. Esse sistema já não existe, em nenhum lugar do mundo", disse ele.

Para o chefe alemão de Vranjakovic, Tito era um ditador de latão, mas para Vranjakovic ele é um símbolo de uma "era de ouro" e, para alguns "jugoslavos" como ele no Ocidente, de um futuro imaginado.

Muito mais do que um anseio agridoce por doces jugoslavos 'Kras' ou boas lembranças de passeios diurnos pela fronteira com o porto italiano de Trieste - 'o Ocidente' - para comprar jeans, o conceito um tanto clichê de nostalgia jugoslava transformou-se para alguns imigrantes de os Balcãs num sistema de valores para o presente e o futuro.

A Yugo-nostalgia, segundo a pesquisadora sediada em Paris Milica Popović disse ao BIRN, está "tornando-se uma atitude política importante e uma exigência dirigida ao tempo presente".

A Yugo-nostalgia como "espaço seguro"

Nem todos partilham a visão de Vranjaković sobre o que a Jugoslávia de Tito representava.

À medida que as forças centrífugas do nacionalismo aumentavam na década de 1980, Tito passou a ser visto por muitos na Jugoslávia como um "ditador", e o seu estado federal uma camisa de forças para povos que, segundo o argumento, realmente queriam viver separados. Ele governou por decreto e tolerou pouca dissidência política.

Para muitas pessoas que olham com carinho para o seu antigo Estado conjunto, no entanto, Tito foi um visionário, um líder que pregou 'fraternidade e unidade' sobre as diferenças de fé, etnia ou língua, que presidiu o avanço dos direitos das mulheres, sobre a inovação arquitectónica e sobre um sistema socialista híbrido que proporcionou aos seus cidadãos um grau de liberdade negado àqueles por trás da Cortina de Ferro. O passaporte jugoslavo abria portas no Oriente e no Ocidente, e Tito era um tipo raro de estadista.

Tito discursa no congresso da Liga Jovem Comunista da Jugoslávia.
Foto: Arquivo do Museu da Jugoslávia

"Durante esse período, a minha cidade natal e a minha região na Sérvia passaram por uma grave emancipação", disse Vranjaković. Mas, na década de 1990, foi a antiga visão que se havia consolidado nos novos estados independentes da ex-Jugoslávia.

Os assassinatos em massa e a limpeza étnica envenenaram as relações entre sérvios, croatas, bósnios e albaneses e - de acordo com vários estudos académicos - a nova interpretação da Jugoslávia enraizou-se também na diáspora, já bem estabelecida pelo êxodo de centenas de milhar de gasterbeiter jugoslavos da década de 1960 em diante e inchado ainda mais por refugiados que fugiram das guerras.

A animosidade espalhou-se para cidades em todo o Ocidente, onde as mini "Jugoslávias" surgiram ao longo de décadas em pequenas bolsas densas; essas comunidades desintegraram-se quase da noite para o dia, quando o "jugoslavo" dispersou-se em sérvio, croata e bósnio.

Ainda hoje, existem alguns resistentes que se agarram à identidade jugoslava como um símbolo da sua rejeição às forças que separaram a Jugoslávia, do ódio e da política de intolerância.

"Eu considero-me jugoslavo porque nasci lá e os meus pais criaram-me com esse espírito", disse Kemal Smajić, especialista em TI de 40 anos, que aos 12 anos chegou à capital austríaca Viena em 1992, quando as forças sérvias da Bósnia sitiaram a sua terra natal, Zvornik, no início da guerra e expulsaram os bósnios muçulmanos.

Apesar dos assassinatos e do trauma, "nunca odiei os sérvios", disse Smajić. "Eu só odiava pessoas que massacravam outras".

Smajic agora mistura-se num círculo social de dezenas de pessoas de toda a ex-Jugoslávia.

"Juntos, vamos passar as férias de verão, esquiar… Da última vez, havia dez casais com filhos. Existem médicos, farmacêuticos, electricistas, burocratas, etc. Somos todos misturados; pessoas de Pirot [Sérvia], Dalmácia [Croácia], Eslavónia [Croácia], centro da Bósnia, Belgrado. Quando nos encontramos, divertimos-nos muito".

Em vez de uma imagem dolorosa e distorcida de um país que se tornou o seu pior pesadelo, para Smajić a "Jugoslávia" é uma metáfora para o seu presente.

Popović, que pesquisa sobre a 'Yugo-nostalgia' na Universidade de Ljubljana e no Instituto de Estudos Políticos de Paris [Sciences Po Paris], disse que alguns daqueles que se lembram da Jugoslávia "criam uma contra-narrativa única", ou o que o egiptólogo alemão Jan Assmann chamaria de 'contra-identidade', em oposição à nova narrativa prevalecente.

Tito recebendo representantes de organizações pioneiras de todas as partes do país na Jornada da Juventude de 1958.
Foto: Arquivo do Museu da Jugoslávia

"Em resposta ao revisionismo hegemónico, a memória da Jugoslávia torna-se subversiva", disse Popović nas suas respostas por escrito ao BIRN.

"Ao mesmo tempo, a nível individual, a Yugo-nostalgia torna-se uma espécie de "espaço seguro" para dissonâncias cognitivas, emoções ambivalentes e tentativas bem ou mal sucedidas de compreender tudo o que nos aconteceu: pessoalmente, socialmente e politicamente.

A pertença étnica é "amplamente insignificante" na vida cotidiana

Na Viena de Smajić, a Dra. Ana Mijić, do departamento de sociologia da universidade pública da cidade, relatou ter encontrado "laços fortes entre pessoas da ex-Jugoslávia".

Num artigo de 2019, Mijić escreveu que "os entrevistados frequentemente afirmam que a sua pertença étnica - ou seja, ser um bósnio, ser um croata, ser um sérvio - é amplamente insignificante na vida quotidiana".

"Eles afirmam que existem laços fortes com pessoas da ex-Jugoslávia em geral ('sa našima') que são distintos dos laços com 'austríacos normais', como alguns entrevistados descrevem, e que a filiação étnica do 'nosso povo' não tem nenhuma importância". Dito isto, noutros casos, os círculos sociais primários são etnicamente homogéneos, escreveu Mijić.

Jana Dolecki mudou-se da capital da Croácia, Zagreb para Viena, em 2013, para fazer um doutoramento. Mal sabia ela que se tornaria a regente de um coro local chamado "29 de novembro", celebrado na Jugoslávia como a data da declaração oficial da federação socialista em 1943.

Jana Dolecki no ensaio. Foto: Dalibor Manjić

Fundado em 2010 por um grupo de artistas da Sérvia, Bósnia e Áustria, o coro por meio das suas canções e apresentações "vive a Jugoslávia", disse Dolecki, de 40 anos.

"Eles começaram a dar vida a esse património, que lhes deu uma identidade política ou substância que lhes faltava até então", disse Dolecki ao BIRN. "Eles perceberam que esse património pode, ainda hoje, se tornar um elemento activo".

Dolecki disse que os participantes do coral - com a estrela vermelha da Jugoslávia nas suas camisas - partilham os valores do antifascismo, solidariedade e internacionalismo que eram centrais para a Jugoslávia socialista, e as suas portas estavam abertas não apenas aos "jugoslavos".

"Somos 20 dos países da ex-Jugoslávia, mais alguns austríacos, suecos, alemães e franceses. Os nossos membros fazem sessões de filmes de inspiração partizana; participamos em conferências e discutimos como continuar a 'viver' a herança jugoslava, por meio da música e do activismo", disse ela.

"Estamos 'vivendo' a nossa manifestação ideal da Jugoslávia".

Em tais eventos culturais, ela disse, "temos a oportunidade de 'viver a Jugoslávia' de uma forma objectiva, sem que a sua identidade seja subjectivamente determinada".

Apelo jugoslavo aos jovens e marginalizados

Que as gerações mais jovens possam sentir a atracção por uma identidade "jugoslava" com mais força não é sem precedentes.

De acordo com Popović, já em 1987 uma pesquisa conduzida em Zagreb e Belgrado e citada pelo estudioso Sergej Flere em 1988, descobriu que mais de 16 por cento das pessoas na Jugoslávia com menos de 30 anos se identificavam como 'jugoslavas' em termos de nacionalidade, embora quase 40 por cento dissessem que a identidade jugoslava seria mais aceitável para eles.

Celebrações do 1º de maio em Belgrado, 1949. Foto: Arquivo do Museu da Jugoslávia

Popović também cita pesquisas qualitativas posteriores, como a conduzida por Eric Gordy, professor sénior de Política do Sudeste Europeu na University College London, para sugerir que a identidade jugoslava era mais aceitável para "grupos populacionais jovens, urbanos e educados".

Vranjaković fala sobre outro factor, vindo de uma cidade predominantemente muçulmana da Bósnia na Sérvia predominantemente cristã ortodoxa.

Embora a dissolução da Jugoslávia tenha deixado muitos a se sentir excluídos, marginalizados ou discriminados, as minorias étnicas nos estados amplamente nacionalistas que surgiram, foram duplamente infelizes - privadas do Estado conjunto em que cresceram e foram vistas com desconfiança nos novos estados que o substituíram.

Tito com membros do coro dos pioneiros no seu aniversário de 1957. Foto: Arquivo do Museu da Jugoslávia

"As políticas oficiais do Estado e a propaganda da imprensa na década de 90 trabalhavam sem parar para endireitar as fronteiras étnicas, rotulando todos de acordo com seu nome e religião”, disse Vranjaković, que rejeita tais rótulos.

"Não mudou muito nos últimos anos e todos quantos se sentem como uma minoria e não gostam de ser rotulados, sentem-se seguros sob a identidade de jugoslavo, que ainda evoca as ideias de antifascismo, fraternidade e unidade".

E é mais fácil abraçar essa "nova velha" identidade em Berlim ou Viena do que em Belgrado ou Zagreb?

"Uma pessoa de mente aberta acha mais fácil abordar outras pessoas aqui do que uma pessoa que vive na Sérvia, Bósnia ou Croácia, onde as correntes nacionalistas são flagrantemente repressivas", disse o especialista em TI de Viena Smajic.

"Nesses países, eles precisam ter cuidado com as palavras, a fim de proteger o seu posto de trabalho ou os seus filhos na escola. Parece que é mais fácil para quem mora no exterior e tem a mente aberta".

Retrato de Mirza Vranjaković. Foto: Cortesia de Mirza Vranjаkovic

Vranjaković descreveu a sua própria identidade como "complexa".

"Venho de Novi Pazar, Sérvia - um lugar que não me aceitava completamente como cidadão", disse ele. "A única bandeira que me faz sentir confortável e 'em casa' é a bandeira da Jugoslávia".


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