O diário madrileno El Español dedica hoje um artigo à guerra silenciosa que Marrocos está travando para anexar as possessões espanholas do norte de África.
Citando fontes da Inteligência espanhola, alerta que Marrocos está aproveitando o que a seu ver é uma alegada "fraqueza" do actual governo de Madrid para continuar com o seu desejo histórico de anexar "a longo prazo" ambas as cidades autónomas.
O jornal faz referência a um documento confidencial a que teve acesso, detalhando como o reino de Mohamed VI tenta há "cerca de dois anos tentar sufocar as economias das duas cidades", no âmbito da uma estratégia de política externa claramente definida.
Essa manobra terá sido acelerada em março de 2020, quando a pandemia se tornou na "desculpa perfeita" para fechar as duas fronteiras com Espanha. O objectivo teria sido conquistar os dois territórios. "Marrocos continua a sua campanha para aumentar a pressão diplomática sobre as cidades de Ceuta e Melilla, sem hesitar em representar ameaças e litígios futuros", afirma o documento a que o jornal teve acesso.
"É muito provável que Marrocos tenha uma directiva ou plano estratégico sobre estas cidades" para a sua anexação "a longo prazo", que costumam implementar com mais ou menos intensidade dependendo da sua situação política ou de Espanha, com medidas unilaterais como o fecho das fronteiras.
O governo marroquino, gozando de uma certa económica e social, tem vindo a modular a sua nova política internacional, sem tirar os olhos das duas cidades autónomas, porque sempre considerou que quando os muçulmanos fossem maioria em Ceuta e Melilha, dar-se-ia uma inevitável anexação sem a necessidade de uso da força.
Em Ceuta existem agora 43% de cidadãos que professam o Islão, segundo o Estudo Demográfico da População Muçulmana, publicado no final de 2019 e em Melilla essa porcentagem é ainda maior: 51,4%.
“Marrocos está vendo que essa rota não dá frutos. É por isso que agora tenta sufocar economicamente as duas cidades". Rabat "Está apertando a corda até ver onde o governo espanhol é capaz de resistir”, diz um líder político de Ceuta citado por El Español.
"Eles sabem que o bipartido PSOE-Podemos tem outras frentes com maior prioridade na agenda. Enquanto isso, Marrocos está abrindo caminho", afiança a mesma fonte. De acordo com o referido relatório, que inclui a informação de uma fonte protegida marroquina, as fronteiras com Marrocos através das duas cidades espanholas deveriam ter sido reabertas no dia 15 de setembro. Mas o Marrocos não o fará pelo menos "inícios do próximo ano”.
Rabat "tenciona reunir-se com as autoridades espanholas para pedir várias coisas. Se Espanha não ceder às suas reivindicações, a fronteira terrestre permanecerá fechada", afirma o relatório.
Desde o começo da pandemia Ceuta e Melilha sofre as consequências, com o desemprego aumentar e os empresários reclamam. Em Marrocos, milhares de carregadores procuram a recolocação e os trabalhadores transfronteiriços ficaram desamparados e sem ajudas, apesar de terem contratos em vigor com empresas espanholas.
O encerramento das fronteiras está a causar, segundo o referido documento confidencial, “um aumento da procura dos produtos, encarecendo o seu abastecimento, com o consequente aumento do pagamento de tarifas e dificuldades nos procedimentos aduaneiros”.
Marrocos também vai regular a entrada de turistas, tentar acabar com a passagem de migrantes pelas cercas e impedir que Ceuta e Melilha se tornem territórios de asilo de cidadãos marroquinos. Ao mesmo tempo, já atrai empresários para o norte do país e continua a importar e exportar mercadorias através dos portos de Tânger e Beni Ensar.
Guerra híbrida
O jornal cita o professor de Ciência Política da Universidade de Granada Javier Jordán, que publicou este ano na revista científica Global Strategy uma análise da trajectória de Marrocos em relação às duas cidades autónomas espanholas. O artigo, intitulado "Ceuta e Melilha: Marrocos usa estratégias híbridas contra a Espanha?" explica como a política externa marroquina se move há anos num espaço de zonas cinzentas, essa fronteira difusa em que é difícil distinguir concorrência legítima de agressões hostis entre países.
"Há um conflito latente. Marrocos reivindica abertamente a posse de ambas as cidades, tornando-se assim o único Estado que desafia a integridade do território espanhol. Embora em 1975 não tenham incluído ambas as cidades na lista das Nações Unidas de Territórios Não-Autónomos (descolonização pendente), as autoridades marroquinas continuaram a manter uma atitude revisionista sobre a delimitação de suas fronteiras fundadoras. Esta posição tem repercussões também na delimitação dos espaços marítimos na zona do Estreito de Gibraltar, uma vez que Marrocos não reconhece as águas territoriais de Ceuta ou, mais a leste, as de Melilha e os rochedos de soberania espanhola".
No artigo, refere-se que o professor destaca ainda que "nos últimos anos o governo marroquino realizou diversas acções que podem ser interpretadas desde a perspectiva 'híbrida'".
O autor ainda dá vários exemplos da estratégia marroquina, como o apelo a consultas que Marrocos fez em 2007 ao seu embaixador em Madrid depois da visita dos reis de Espanha a Ceuta e Melilha; a detecção a partir de 2010 de passaportes marroquinos de nascidos em Ceuta ou Melilha que atribuíam a posse de ambas as cidades a Marrocos, ou o encerramento unilateral em 2018 da fronteira comercial entre Melilha e Marrocos, uma decisão que visou favorecer o porto de Nador, sem consultar ou informar o governo de Madrid.◼️
As ideias expressas no presente artigo / comentário / entrevista refletem as visões do/s seu/s autor/es, não correspondem necessariamente à linha editorial da GeoPol
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