Eduardo Jorge Vior

Eduardo J. Vior

Historiador doutor em Sociologia


Rodeado pelos seus inimigos de dentro e de fora, o líder brasileiro procura na política externa o apoio para recuperar a economia e conduzir o seu povo para fora da fome e da violência


"Não se pode criar nada por si mesmo; só se pode esperar até ouvir a passagem de Deus a ecoar através dos acontecimentos; depois dá um salto em frente e agarra a ponta do seu manto. E é tudo”.

(Otto von Bismarck, chanceler da Prússia e da Alemanha, 1862-90)

Este domingo 30, Luis Inácio Lula da Silva venceu a segunda volta das eleições presidenciais brasileiras por uma pequena margem, o seu adversário ganhou na metade sul, a metade mais rica e poderosa do país e terá ainda durante dois meses oportunidades suficientes para causar danos no Planalto. O próximo governo será apoiado no Congresso por dez partidos que têm estado frequentemente em desacordo entre si, enquanto a legislatura será liderada pelo “Centrão", que acaba de apoiar Jair Bolsonaro e tem a certeza de cobrar um preço elevado por cada lei que aprovar. O vice-presidente eleito, Geraldo Alkmin, é um líder de centro-direita que em 2014 iniciou o processo de impugnação contra Dilma Rousseff. O futuro presidente, por sua vez, tem 77 anos de idade, superou o cancro há alguns anos e durante a sua prisão perdeu a sua companheira de vida, um irmão e um neto. Tantos golpes acumulados deixam a sua marca.

Estas circunstâncias pessoais e políticas são agravadas pelo contexto económico e social. No Brasil há fome e milhões de brasileiros dormem nas ruas. Na Amazónia, os fazendeiros queimam um campo de futebol por dia. A polícia, milícias e civis armados assassinam diariamente negros, índios e pobres. O tráfico de droga controla o sul do país com a benevolência do alto comando militar e as ramificações no Paraguai. A Bolsa de Valores de São Paulo já avisou que não tolerará o menor desvio da política prevalecente de estabilidade macroeconómica.

No obstante tanta adversidad, Lula vio la puerta abierta y entró. La Historia mundial está dando un salto gigantesco: se acabó el orden atlántico del último milenio y uno nuevo está surgiendo. Brasil y Argentina juntos pueden reconducir el Mercosur. En cooperación con México liderarían la CELAC y desde esta plataforma podrían negociar en bloque con China y con EE.UU. La Unasur reconstruida ofrecería el sustento político para pacificar y organizar el subcontinente, el BRICS+, en tanto, puede brindar un escenario privilegiado para que Brasil participe en el liderazgo mundial. La iniciativa de la Franja y la Ruta, finalmente, interconectaría a Brasil con la nueva economía mundial. Lo que su país no da, Lula lo busca en la nueva arquitectura internacional.

Llamó la atención que el domingo por la noche Lula leyera un discurso medido y cuidadosamente preparado. No es su hábito. Fue un texto programático en el que hizo hincapié en la defensa de la democracia; la lucha contra el hambre, el impulso del desarrollo sostenible con inclusión social y en una "lucha implacable contra el racismo, los prejuicios y la discriminación". Invitó también a la cooperación internacional para preservar la selva amazónica y anunció que luchará por un comercio mundial justo.

La tarea de Sísifo de Lula comienza ahora. Hereda una nación devastada: al menos 33 millones de brasileños están sumidos en el hambre, otros 115 millones luchan contra la "inseguridad alimentaria" y el 79% de las familias son rehenes de altos niveles de endeudamiento personal. Deberá enfrentarse a un Congreso y un Senado profundamente hostiles e incluso a gobernadores bolsonaristas, por ejemplo, en el estado más poderoso de la federación, São Paulo, que concentra más poder de fuego industrial que muchas latitudes del Norte Global.

O vector absolutamente fundamental é que o sistema financeiro internacional e o "Consenso de Washington", que já controla a agenda de Bolsonaro, capturaram o governo de Lula mesmo antes do seu início. Não é por acaso que a revista britânica neoliberal The Economist já "avisou" o presidente eleito para se mudar para o centro, ou seja, para permitir que o seu governo fosse dirigido pela máfia financeira internacional. Lula irá provavelmente nomear Henrique Meirelles como ministro da economia. O antigo CEO da FleetBoston (o segundo maior credor externo do Brasil depois do CitiGroup) já manifestou o seu apoio sem reservas a Lula, para quem trabalhou anteriormente como chefe do Banco Central. Se for nomeado, Meirelles irá certamente manter a política de estabilização macroeconómica do actual ministro Paulo Guedes, confirmando assim a linha traçada pelo próprio Meirelles em 2016, durante o governo de Michel Temer, após o golpe institucional contra Dilma Rousseff.

O cerco internacional em torno de Lula tem vindo a ser construído há meses. Em abril último, a subsecretária de Estado para os Assuntos Políticos dos EUA, Victoria Nuland, autora do golpe de Estado de 2014 na Ucrânia, visitou o Brasil "oficiosamente". Recusou-se a encontrar-se com Bolsonaro e elogiou o sistema eleitoral brasileiro. Mais tarde, Lula prometeu à UE uma espécie de 'co-governação' da Amazónia e condenou publicamente a 'Operação Militar Especial' russa na Ucrânia. Tudo isto depois de ter elogiado Joe Biden em 2021. A "recompensa" pela actuação foi uma capa de revista Time.

Tudo isto pode sugerir que o novo governo do Partido dos Trabalhadores será alinhado numa pseudo-esquerda (neoliberalismo com um rosto humano) e infiltrado por todo o tipo de vectores de direita ao serviço de Wall Street e do Departamento de Estado. Os pontos-chave seriam então a aquisição de bens económicos essenciais pelos suspeitos globalistas habituais e o estrangulamento do espaço soberano do Brasil.

Lula, claro, é demasiado inteligente para ser reduzido ao papel de mero refém de capital financeiro internacional especulativo e concentrado, mas a sua margem de manobra doméstica é extremamente limitada.

A nível externo, Lula jogará um jogo totalmente diferente. Tendo sido fundador do BRICS em 2006, é altamente respeitado por Xi Jinping e Vladimir Putin. Prometeu cumprir apenas um mandato, até ao final de 2026, mas esse é precisamente o período chave para atravessar a década que Putin descreveu no seu recente discurso na conferência anual do Clube Valdai como a mais perigosa e importante desde a Segunda Guerra Mundial.

O impulso para um mundo multipolar, representado institucionalmente por uma congregação de organismos que vão desde os BRICS+ à Organização de Cooperação de Xangai e à União Económica Eurasiática, beneficiará enormemente de ter Lula a bordo como o líder natural do Sul Global.

Naturalmente, o seu foco imediato de política externa será a América do Sul: ele já anunciou que a sua primeira visita presidencial o trará à Argentina. De facto, em janeiro a cimeira anual da CELAC terá lugar na Argentina, onde a Casa Rosada espera voltar a deter a presidência pro tempore. Na reunião, o Brasil voltará certamente a fazer parte do bloco. Lá, Lula terá a oportunidade de falar com os seus pares de todas as cores, desde Nicolás Maduro e Daniel Ortega até Guillermo Lasso e Luis Lacalle Pou.

Depois visitará Washington. Tem de o fazer. Mantenha os seus amigos perto e os seus inimigos ainda mais perto, diz o ditado. Ninguém no Sul Global duvida que sob Barack Obama e Joe Biden a complexa operação para derrubar a Dilma em 2014 e expulsar Lula da política foi orquestrada, mas nos maus momentos é preciso pôr-lhe uma boa cara.

A propósito, na cimeira do G20 a realizar no Bali dentro de duas semanas, o Brasil terá uma representação meramente formal, mas o presidente eleito irá certamente enviar uma delegação não oficial para a qual a Argentina abrirá a porta. Em janeiro próximo, na próxima cimeira dos BRICS na África do Sul, os papéis serão invertidos e será o Brasil a dar as boas-vindas à Argentina. Somar-se-ão ali a Arábia Saudita e, provavelmente, o Irão e a Turquia.

Lula já declarou que os BRICS serão o instrumento central da sua política externa. Há uma razão lógica para isto: esta plataforma intercontinental reúne potências emergentes da Ásia, África e América Latina com regimes e orientações diferentes, mas todas concordando na construção de uma ordem internacional em pé de igualdade. Acima de tudo, porém, o precedente histórico pesa: desde o início do seu governo em 2003, Lula apostou numa parceria estratégica com a China e considerou a sua primeira viagem a Pequim em 2004 como a sua principal prioridade em matéria de política externa. Desde 2009, o Brasil tem sido o principal parceiro comercial da China na América Latina, absorvendo aproximadamente metade dos investimentos da potência asiática na região e mais investimento do que qualquer outro destino latino-americano até 2021. É também o quinto maior exportador de petróleo bruto para o mercado chinês, o segundo maior exportador de minério de ferro e o maior exportador de soja. Lula é considerado pela China como um velho amigo e esta capital política abrirá praticamente todas as portas vermelhas para ele.

Isto pode implicar que Lula inscreva formalmente o Brasil como parceiro na Iniciativa Belt and Road (BRI) de uma forma que não perturbe os EUA. O presidente eleito, afinal, é um mestre desta arte.

O tempo é curto: não se sabe quanto tempo Lula ainda tem de vida e o líder não tem sucessor. Em algum momento desta década, os EUA terão resolvido a sua luta interna e tentarão voltar ao bom caminho. Ninguém sabe quando ou como a guerra mundial em curso será resolvida, nem se sabe como será a ordem do pós-guerra. É por isso que não há um minuto a perder. Na noite das eleições, Lula leu um discurso programático, a fim de iniciar negociações com as diferentes facções políticas e económicas no dia seguinte e não deixar a mais pequena brecha através da qual a violência reaccionária se poderia infiltrar. Alberto Fernández deslocou-se imediatamente ao Brasil para chegar a acordo sobre a agenda regional e internacional. As cimeiras do G20, CELAC e BRICS+ estão mesmo ao virar da esquina e a coordenação Brasil-Argentina é essencial. Só juntos podemos, no Mercosul, tapar o buraco sob a linha de água que o Uruguai abriu ao iniciar negociações para um acordo de comércio livre com a China. Quando a História dá um salto, deve ser montada sem hesitação, mas com o impulso certo, porque, se o impulso falhar, permanecerá por muito tempo de pernas para o ar de e com as costas partidas.

Imagem de capa por Jeso Carneiro sob licença CC BY-NC 2.0

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