Ricardo Nuno Costa

Editor-chefe GeoPol


Uma visita sumamente importante, numa altura que à Alemanha lhe resta muito pouca margem de manobra. É a hora das grandes decisões em Berlim!


A visita de Olaf Scholz à China coincide com o momento mais crítico da Alemanha em décadas. O governo de coligação por ele liderado terá agora de reafirmar o país como um Estado soberano, líder económico do processo europeu, dentro de um contexto multipolar cada vez mais indiscutível. Ou então, deixar eclipsar-se na total dependência do sistema especulativo dólar-euro transatlântico que se afunda a cada dia a olhos vistos.

Era pois uma visita sumamente importante a de ontem, numa altura que à Alemanha lhe resta muito pouca margem de manobra, após sucessivos dislates em política externa. É a hora das grandes decisões em Berlim!

Scholz levou consigo uma nutrida comitiva de uns 60 empresários de topo, entre os quais os CEO da Adidas, Bayer, BMW, Siemens, Deutsche Bank, Mercedes-Benz, Volkswagen e BASF. Era uma visita que gerava natural apreensão aos industrialistas, após meses de decisões irresponsáveis e imperdoáveis da classe política, à qual se deve as desastrosas consequências na falta do fornecimento de energia, que ameaça agora empurrar a economia alemã para o precipício.

Manter uma relação estável com a China afigura-se desta forma imprescindível, pois a Alemanha é o elo que mais se tem beneficiado desta relação entre duas das quatro maiores economias do mundo. Há ainda muito sumo por extrair desta ligação e as comunidades industriais alemã e chinesa têm esperanças de fazer avançar a cooperação prática entre os dois países, ultrapassando as obvias e cada vez mais agressivas tentativas de sabotagem.

Discurso ambíguo de Scholz

"É necessário um mundo multipolar no qual o papel e a influência dos países emergentes possam ser levados a sério. A Alemanha opõe-se ao confronto em bloco, pelo qual os políticos devem ser considerados responsáveis. A Alemanha desempenhará o seu papel na promoção das relações Europa-China", disse Scholz. Bravo!

Mas Scholz também cometeu uma imprudência, ao levar a retórica das armas nucleares a Xi. Um não-tema naquilo que se refere à Rússia, que jamais ameaçou o uso de tais armas. Xi respondeu de forma sábia: que devemos todos nos opor às armas nucleares, que essas guerras não devem ser jamais travadas, e que devemos "evitar uma crise nuclear na Eurásia". Xi sabe que a narrativa nuclear lançada pelos grupos de reflexão e elites ocidentais, e profusamente replicada pelos seus inúmeros canais e 'influencers', não é nem gratuita nem ingénua, e que visa o super-continente euroasático, muito provavelmente o seu país.

O pragmatismo comercial chinês

No seu convite a Scholz, Xi tinha já oferecido uma "cooperação pragmática". O porta-voz do MNE chinês Zhao Lijian insistiu que "somos parceiros, não rivais". Zhao disse que a cooperação das últimas décadas tinha mostrado "que os dois países têm mais coisas em comum do que diferenças". Basicamente Pequim exige reciprocidade de tratamento, e que os parceiros alemães e europeus não interfiram nos seus temas internos.

Neste sentido, e referindo-se às relações com a Europa e em clara alusão à actual atitude de Bruxelas e Berlim para com Moscovo, Xi advertiu que "a confiança política é fácil de destruir, mas difícil de reconstruir", devendo esta "ser alimentada e protegida por ambas as partes". Assinalando a estabilidade e consistência na política de Pequim em relação à Alemanha, o presidente chinês também aconselhou Scholz a seguir uma política positiva com a China para benefício de ambos os países.

O mandatário chinês deixou claro que o seu país considera a Europa como um parceiro primordial e apoia a autonomia estratégica da UE, desejando a estabilidade e prosperidade do continente. As suas relações com a Europa não deveriam ser "dependentes ou sujeitas a terceiros". Mais um sábio conselho que alude com meridiana clareza às manobras da Casa Branca sobre a nossa identidade continental.

A oposição interna na Alemanha

As críticas à visita do chanceler do SPD vieram sem surpresas, não da oposição da CDU/CSU nem da direita populista, mas sim dos parceiros de coligação governamental (dos Verdes e dos liberais do FDP). Ambos os partidos têm sido os mensageiros do guião do Departamento de Estado, e tudo têm feito para minar as relações entre Berlim e Pequim. O caso mais recente foi o vendaval desnecessário criado em redor de uma participação minoritária da chinesa Cosco no mais pequeno terminal de contentores do porto de Hamburgo. Tudo isto para impedir que a China se converta na maior economia do mundo, como abertamente foi definido como estratégico, tanto por Trump como por Biden. Afinal de contas sabemos quem colocou os Verdes no poder e o que representa o FDP desde '45.

A ministra dos Negócios Estrangeiros Annalena Baerbock (dos Verdes) afirmou na quinta-feira, durante a reunião com os seus congéneres do G7 em Münster, que o grupo vai passar a considerar a China como um "concorrente" e "rival". Aliás quase toda a reunião se debruçou sobre a Rússia e sobretudo a China, numa autêntica declaração de intenções da hostilidade que Pequim deve esperar nos próximos tempos.

Os Verdes adoptam geralmente a retórica mais dura contra a China na Alemanha e reduzem de forma insistente o debate da relação com a China em torno dos direitos humanos e de temas do foro interno, como o Tibete, Taiwan, Xinjiang ou Hong Kong. Tudo baseado na ideia da "defesa dos nossos valores", uma terminologia tão vácua quanto banal, usada de forma profícua e repetitiva pelas classes tecnocráticas a mando de interesses terceiros. A persistência na ideia de uma "ordem internacional baseada em regras" em detrimento da lei internacional consubstanciada concretamente na Carta das Nações Unidas, na ONU e na série de tratados e acordos entre nações soberanas. Um jogo perigoso e niilista, assente no poder da força.

Paira a sombra da interferência de Washington via G7

É exactamente deste espectro que Scholz deve aguardar fortes pressões nos próximos tempos. Scholz devia de se perguntar como julga que vai conduzir uma política económica saudável com Pequim, quando à frente da sua diplomacia tem uma agente que gere o seu ministério na base da ortodoxia ideológica pautada pelas causas tipo 'pirraça', diametralmente oposta ao pragmatismo que exigem as relações industriais, económicas e comerciais. Ter no topo do seu governo personagens que agem sob pressões de Washington, contra os interesses da Alemanha e dos alemães comuns é impraticável. Esta contradição tem que ser resolvida sem demora, sob pena de lançar o país no caos social.

Ao interferir de forma imprudente nos negócios dos outros, Washington está apenas a demonstrar fraqueza e impotência no campo da liberdade económica de que se diz grande paladino. Nos últimos anos os EUA não fizeram segredo da sua intenção de conter o desenvolvimento da China. Têm medo, e apostam por pressionar os seus aliados a seguir a sua liderança, mesmo contra os seus próprios interesses. Esta política está contudo a tornar-se cada vez mais ineficaz. A China não pode ser contida pela força do trabalho, da produção ou do comércio. Resta a Washington e os seus vassalos do G7 a interferência, a disrupção, o conflito... 

Porque é agridoce o rescaldo da visita?

Posto isto, a análise da viagem deve ser tomada com cautela. Se é positivo que Scholz afinal não foi à China como mero moço de recados das ameaças de Biden como se temia, e até tenha taxativamente rejeitado a via desacoplamento da China, há que aguardar pelos próximos meses para nos assegurarmos que a Alemanha vai continuar na senda do crescimento com o seu maior parceiro comercial. Afinal nas últimas cinco décadas, o comércio bilateral multiplicou-se quase 1.000 vezes, servindo o desenvolvimento económico e social para ambos os lados. 

Que passará amanhã, se Scholz for ameaçado para não levar adiante os acordos com a China? Afinal de contas, recorde-se que este foi o chefe de governo que nem reagiu quando ao seu lado, o presidente dos EUA ameaçou em "acabar" com o Nord Stream 2, uma infraestrutura crítica da energia do seu país!

Por outro lado, há que perguntar-se: que seriedade merece, e que garantias oferece hoje um parceiro que fez à Rússia o que fez nos últimos meses, sob a maltrapilha escusa de um conflito do qual nada tinha nada a ver? A nacionalização da Gazprom Germania, a exclusão do SWIFT, o congelamento dos activos financeiros são um precedente perigosíssimo... A Alemanha e a Europa têm agido ultimamente de forma irreconhecível e traiçoeira com os seus parceiros. A China teria todas as razões para ter um pé atrás antes de investir um euro na Alemanha e na Europa. Nada lhe garante que amanhã não lhe passe o mesmo que à Rússia, se apostar por retomar Taipé ou resolver qualquer outro tema doméstico.

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ByRicardo Nuno Costa

Editor-chefe da GeoPol, é um jornalista português licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais, com estudos posteriores em Comunicação Política. Estagiou política internacional no DN, em Lisboa e trabalhou durante anos em meios digitais em Barcelona.

One thought on “Scholz em Pequim, com a sabotagem de Washington via G7 à vista”

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