Ricardo Nuno Costa
Editor-chefe GeoPol
Bem sei que o conceito de democracia na Rússia é diferente do da Europa ocidental, e nem por isso acho que isso seja uma desgraça. Foi dessa forma que tiraram o país do caos pós-soviético dos anos 90, e só quem não tem memória o pode negar.
Eu sempre disse que Putin era uma espécie de democrata-cristão à moda russa, e que pela primeira vez o país tem algo que se parece com uma democracia. De facto, muito atrás do presidente surgem nas sondagens os comunistas e depois ainda os ultra-nacionalistas, e não nenhum "liberal" como gostaria a imprensa ocidental.
Mas desses temas internos saberão melhor os russos, que votam cada seis anos no seu sistema presidencialista. O que sim sei, é que não só a liberdade de expressão já conheceu melhores dias nas democracias liberais deste lado ocidental da Europa, como ainda por cima estas garantem cada vez menos a harmonia e coesão social, em rápida degradação.
Neste panorama definir-se-ão rapidamente as coisas nos próximos tempos, com uma Europa a jogar entre a sua aliança liberal transatlântica que nos trouxe até aqui e a abertura à Rússia, um gigante territorial e um imenso mercado em potência. A Alemanha joga um papel de relevo nesta tarefa.
Três funcionários consulares da Alemanha, Polónia e Suécia, em Moscovo e São Petersburgo, decidiram participar nos protestos não autorizados anti-Putin e desafiar a ordem e a lei do Estado soberano onde trabalhavam. Viram prontamente as suas credenciais revogadas esta semana e foi-lhes dada ordem de abandonar o país mais rápido possível. Esta é a resposta que se espera de um país sério.
Nem vale a pena estender-se demasiado sobre o actual personagem querido dos liberais europeus, pois há muita coisa já documentada, desde o seu racismo confesso até ao seu recrutamento pela inteligência norte-americana há mais de 10 anos, ou ao recente caso que o trouxe até Berlim, sob alegações de envenenamento repetidas até à exaustão e até hoje sem nenhuma prova. O que é certo é que desde 2013 tem contas com a Justiça por casos de fraude e até deu-se ao luxo de evadir-se, fazendo-se valer da sua condição de blogueiro com milhões de seguidores e de ter as "costas quentes" por estar debaixo dos holofotes da imprensa internacional.
Mas Navalny nem seque é importante (veja-se como a UE já descartou outro jovem líder da oposição liberal, o venezuelano Guaidó!). Aqui importam menos os personagens que o efeito que se pretende criar, que neste caso é o de que a Rússia é uma ditadura e por conseguinte Putin é um inimigo a abater. A percepção pública é tudo o que importa no âmbito da guerra híbrida em curso.
O alto representante da diplomacia europeia, o socialista catalão Josep Borrell, chegou ontem a Moscovo com uma mão à frente e outra atrás, dizendo ao seu homólogo Serguei Lavrov, que a UE não tolera que Navalny esteja preso, ao que Lavrov recordou os recentes casos de brutalidade policial na França (onde há claramente uma clivagem autoritária), ou a perseguição política aos independentistas catalães em Espanha.
Mestre em diplomacia, o responsável russo também disse que apesar de tudo, Moscovo não pretende intrometer-se nestes assuntos internos e espera atitude recíproca dos colegas europeus em relação aos seus temas, neste caso do seu sistema judicial.
Sem resposta, Borrell preferiu falar depois de coisas sérias e mostrou-se aberto a resolver uma serie temas importantes para ambas as partes, como o JCPOA, as mudanças climáticas ou o combate à pandemia, entre outros. "Identificámos áreas e diferentes questões bilaterais e internacionais. Isto é o que é importante", admitiu o espanhol, ao que Lavrov respondeu que espera que a "UE opte por uma cooperação profissional e pragmática".
Isto é o que se espera de um diálogo construtivo, dir-me-ão. Sim, mas não tardou nada para que a imprensa europeia - em particular a alemã – verter o seu habitual discurso cansativo e desonesto contra o actual governo russo.
Também a demissionária Merkel aproveitou para dar lições de moral e dizer que se "observa uma ruptura com o Estado de direito actualmente na Rússia", na sequência da expulsão do funcionário alemão que andava em demonstrações de rua ilegais... Até agora a chanceler não pôs em causa a conclusão do gasoduto Nord Stream 2 ou a importação de vacinas Sputnik V, mas pressões nesse sentido não têm faltado.
Por outro lado e após quatro anos de um moderado mas louvável entendimento entre as duas maiores potências militares do planeta, o recém chegado Joe Biden, uma velha cara conhecida de várias guerras, usou da sua primeira conferência de imprensa sobre temas internacionais para acusar a Rússia "de prejudicar e perturbar a democracia americana" e avisar Putin que tinham acabado "os dias em que os Estados Unidos olhavam para o outro lado face às acções agressivas da Rússia".
"Não hesitaremos em aumentar os custos para a Rússia e defender os nossos interesses vitais e do nosso povo. Seremos mais eficazes no confronto com a Rússia quando trabalharmos em coligação e coordenação com outros parceiros com os mesmos interesses", disse o novo mandatário da Casa Branca.
O mais interessante é que após todas estas acusações, afinal o problema resumia-se outra vez e tão só ao sonante blogueiro e "aos esforços da Rússia para suprimir a liberdade de expressão e de reunião pacífica", segundo Joe Biden. Navalny "deve ser libertado imediata e incondicionalmente", exigiu. Ou seja, se entendi bem, o novo presidente dos EUA não admitirá que a Rússia faça cumprir as suas leis no seu território, nem terá sistema judicial soberano e independente. Preparem-se pois para a nova administração progressista pôr isto a ficar sério.
Imaginam o que seria se a Rússia decidisse agora apoiar o jovem líder da oposição norte-americana, Jake Angeli (o dos cornos), que liderou a tomada do Capitólio e foi preso, porque nos Estados Unidos não há liberdade e se dedicam a prender os opositores? Ou se acusasse Biden de ter mandado assassinar Christopher Stanton, o outro mediático assaltante de 6 de janeiro, que se sentou na secretária de Nancy Pelosi com os pés em cima da mesa e foi encontrado morto, com um tiro no peito, na garagem da sua casa uma semana depois? E com isso exigisse a renúncia de Biden, ao ponto de escalar o discurso e ameaçar os Estados Unidos?
Seria ridículo, não seria? Mas abriria um precedente perigoso.
As ideias expressas no presente artigo / comentário / entrevista refletem as visões do/s seu/s autor/es, não correspondem necessariamente à linha editorial da GeoPol
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