Um mundo em mudança
A era em que os Estados Unidos e a Rússia decidiam as questões mais importantes do mundo faz parte do passado, disse na quinta-feira o presidente russo, Vladimir Putin, ao discursar em video-conferência para o Clube de Valdai, um dos principais think tanks russos.
Durante o seu discurso de 40 minutos Putin cobriu uma série de assuntos, incluindo a pandemia do Covid-19, o aquecimento global e a ordem mundial pós Guerra Fria.
O responsável do Kremlin sugeriu que o papel dos Estados Unidos tinha diminuído, juntamente com o da Grã-Bretanha e da França, cujos papéis desempenhados na política internacional foram "significativamente transformados".
"Em termos do seu peso económico e influência política, a China está a avançar activamente para o estatuto de uma superpotência", disse, reconhecendo que "a Alemanha está a avançar na mesma direcção".
Ele desafiou a opinião de certos "especialistas" de que estamos a assistir a um "desvanecimento gradual" da Rússia e vincou que o seu país continuará a ser uma das principais potências mundiais.
Ao abordar a crise do Covid-19, disse a cooperação internacional será fundamental, afirmando que os países precisam de um Estado forte para controlar eficazmente a propagação do coronavírus.
Também frisou a necessidade de cooperação entre as nações em matéria de alterações climáticas.
O papel dos EUA
Putin afirmou já não ter a certeza de que os americanos ainda queiram falar na sua pretensa condição de superioridade, argumentando que "os EUA, que em algum momento gozaram de domínio absoluto, dificilmente podem agora reivindicar o excepcionalismo".
Afirmou ainda que se Washington não está preparado para discutir problemas globais com Moscovo, enquanto a Rússia está aberta a ter essa discussão com outras nações.
Em relação às eleições norte-americanas de 3 de novembro, Putin disse esperar que a nova Administração esteja pronta para o diálogo sobre segurança e controlo de armas nucleares.
Relação com a China
Sobre a relação com a China, Putin observou que realiza consultas constantemente com Xi Jinping, a quem chamou seu amigo. Segundo o presidente russo, o valor do comércio entre os dois países ultrapassou os 111 mil milhões de dólares em 2019. "Sem dúvida, vamos conseguir ainda mais", acrescentou.
"As relações Rússia-China atingiram um nível sem precedentes. Tratamo-nos uns aos outros com grande confiança, estabelecemos ligações fortes, estáveis e, o que é importante, eficazes em todas as direcções", disse Putin.
Observou também que actualmente os dois países estão a implementar grandes projectos conjuntos sobre energia e outras esferas da economia e estão a reforçar a interacção na arena internacional.
Sobre uma possível aliança militar, Putin disse não haver necessidade na actualidade, mas salientou que esta pode ser forjada no futuro, assinalando o aprofundamento dos laços entre os dois países, em especial no meio das tensões crescentes com os Estados Unidos.
Mais concretamente, perguntado se uma união militar entre Moscovo e Pequim era possível, Putin respondeu que "não precisamos dela, mas, teoricamente, é bem possível imaginá-la".
A Rússia e a China têm uma parceria estratégica, mas até agora nenhum dos países propôs a possibilidade de formarem uma aliança militar.
Putin assinalou os jogos de guerra (Kavkaz 2020) no Cáucaso no mês passado, com a participação das forças armadas da China e da Rússia, como um sinal da crescente cooperação militar entre os dois países.
Também referiu que a Rússia partilha tecnologias militares sensíveis que ajudam a aumentar significativamente o potencial militar da China. "Sem qualquer dúvida, a nossa cooperação com a China está a reforçar a capacidade de defesa do exército chinês", disse, acrescentando que no futuro poderia ver ainda mais estreitos os laços militares entre os dois países. "O tempo mostrará como se desenvolverá", disse.
Enquanto a Rússia tem procurado desenvolver laços mais fortes com a China e outros parceiros no mundo, as suas relações com o Ocidente têm-se deteriorado até mínimos desde o final da Guerra Fria, com o golpe de Estado na Ucrânia em 2014 e o recente caso Navalny com o governo alemão, a evidenciar essa tendência.
Renovação do Novo START
Na sua intervenção, Putin salientou a importância de prorrogar o Novo Tratado START que expira em fevereiro. Em vigor desde 2010, é o último pacto de controlo de armas nucleares da Rússia com os Estados Unidos.
O Novo START foi assinado por Barack Obama e pelo então presidente russo Dmitry Medvedev, limitando cada país a não mais de 1.550 ogivas nucleares e 700 mísseis e bombardeiros destacados. Também prevê a realização de inspecções das partes contrárias in loco para verificar a sua conformidade.
No início desta semana, os EUA e a Rússia assinalaram a sua disponibilidade para aceitar compromissos para salvar o tratado, apenas a duas semanas das eleições presidenciais americanas, nas quais o presidente Donald Trump enfrenta um forte pressão do antigo vice-presidente Joe Biden, em cuja campanha acusou Trump de ser demasiado brando com a Rússia.
Moscovo tinha-se oferecido para prolongar o pacto sem quaisquer condições, mas a administração Trump insistiu na adesão da China como condição para o renovar. A China recusou-se a considerar a ideia. Os EUA modificaram recentemente a sua posição e propuseram uma prorrogação do tratado por um ano, mas afirmaram que a mesma deve ser associada à imposição de um limite mais amplo às ogivas nucleares.
O Kremlin inicialmente resistiu à exigência de Washington, mas a sua posição mudou esta semana, com o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo a afirmar que pode aceitar um congelamento das ogivas se os EUA concordarem em não apresentar exigências adicionais. Putin não abordou a questão do congelamento das ogivas, mas enfatizou a importância de salvar o Novo START.
"A questão é se devemos manter o tratado existente tal como está, iniciar uma discussão detalhada e tentar chegar a um compromisso num ano ou perder completamente esse tratado, deixando-nos a nós próprios, Rússia e Estados Unidos, juntamente com o resto do mundo, sem qualquer acordo que restrinja uma corrida às armas", disse Putin. "Creio que a segunda opção é muito pior".
Ao mesmo tempo, acrescentou que a Rússia "não está agarrada ao tratado" e garantirá a sua segurança, mesmo sem ele. Apontou a percepção da vantagem da Rússia nas armas hipersónicas e indicou a disponibilidade para as incluir num futuro pacto.
"Se os nossos parceiros decidirem que não precisam dele, bem, que assim seja, não podemos detê-los", disse.◼
As ideias expressas no presente artigo / comentário / entrevista refletem as visões do/s seu/s autor/es, não correspondem necessariamente à linha editorial da GeoPol
Siga-nos também no Youtube, Twitter, Facebook, Instagram, Telegram e VK
- A intentona da Rússia e os distúrbios de França - 6 de Julho de 2023
- Grande entrevista ao Comandante Robinson Farinazzo - 24 de Junho de 2023
- Entrevista Embaixador Henrique Silveira Borges - 13 de Maio de 2023