O Leste da Alemanha pesará mais, podendo forçar Berlim a uma abordagem diferente tanto em relação à guerra na Ucrânia, como em relação à sua convivência com a Rússia


As eleições para o Parlamento Europeu (PE) do passado dia 9 na Alemanha, para além de terem polarizado as posições em torno do tema da guerra na Ucrânia, com a vitória da hiper-atlantista CDU/CSU por um lado, e pelo forte crescimento das forças anti-guerra em torno da AfD e da BSW por outro, também mostraram que a maior divisão política do país é entre Leste e Oeste, ou seja, entre os antigos estados da RDA e RFA.

Porque é que 34 anos após o desaparecimento da RDA isto não só se faz sentir, como parece ganhar nova força? Talvez porque a “reunificação da Alemanha” não tenha sido realmente uma reunificação, mas antes uma anexação da RDA às estruturas da RFA. Isto obedecia aos desígnios de Bona para fazer uma “troca geopolítica implícita no Tratado de Maastricht, na qual a Europa deu luz verde à Alemanha para uma rápida reunificação, em troca da europeização do marco”[1]. Estas são palavras do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Gianni di Michelis, que conduziu o seu país nas negociações sobre o Tratado da União Europeia de 1992 que instituiu o Banco Central Europeu e as bases para a moeda única

O euro como um marco estendido, com o beneplácito de Washington

Segundo ele tratava-se de uma espécie de rebatismo e adaptação da divisa alemã à nova escala de uma Europa que se estenderia a Leste. “As verdadeiras negociações decorreram em segredo absoluto: a reunificação alemã não teria sido possível sem o consentimento da Europa”, refere. Assim, a inclusão da RDA, com os seus 16 milhões de habitantes, que vinha de uma ditadura e tinha uma economia que não cumpria com os critérios comunitários, tardou meio ano, enquanto as candidaturas de Espanha e Portugal, países que viviam já em democracia, tiveram que se adaptar aos estritos parâmetros económicos da CEE, até serem aprovadas 7 anos depois.

Em 1997, Zbigniew Brzezinski, afirmava na Foreign Affairs que “qualquer expansão do âmbito político da Europa é automaticamente uma expansão da influência dos EUA […] Uma Europa alargada estenderá o alcance da influência dos EUA sem, ao mesmo tempo, criar uma Europa tão integrada politicamente que desafie os EUA em questões de importância geopolítica”[2]. Desta forma honesta descrevia o antigo conselheiro de Segurança Nacional norte-americano a função instrumental da EU para a expansão estratégica de Washington em solo europeu.

Foi assim que a RDA e muitas das suas estruturas genuinamente germânicas vindas da antiga Prússia foram absorvidas e eliminadas numa RFA dominada pela educação da Escola de Frankfurt, a economia de consumo, a imigração maciça e pela cultura americana. Ao longo dos anos isto levou a movimentos de reação de baixa intensidade em redor da ideia de “Ostalgie“ (jogo de palavras para descrever a nostalgia do Leste), de cariz identitário coletivo em todo o espaço da antiga RDA, incluindo Berlim Leste.

Fim da guerra e restabelecimento de relações com Rússia

É curiosamente neste espaço que o sentimento anti-guerra também mais se faz sentir na atualidade, seguindo uma tendência institucional da Hungria, Eslováquia e Sérvia, mas também de largos sectores populares na República Checa, Croácia, Roménia, Bulgária e Áustria. Algo que contradiz a narrativa ocidentalista que insiste no lugar-comum de que “os países do Leste da Europa guardam grandes ressentimentos em relação à Rússia”.

Coincidentemente é no Leste da Alemanha que também há mais reação ao modelo multicultural imposto pela EU/NATO, visível no voto anti-imigração da AfD e também de uma nova esquerda que surge agora na forma da BSW, com alguns pontos em comum. Foi também aqui que houve mais manifestações contra a crise dos refugiados de 2015/16. Mais tarde, com a crise da COVID-19, foi também no Leste que tiveram lugar as primeiras grandes demonstrações contra as mediadas governamentais. Mais recentemente, nos protestos dos agricultores foram vistas bandeiras da RDA, um sinal não tanto separatista, mas com claro significado de que “nem tudo era assim tão mau antigamente”.

«Ossis» e «Wessis»: duas mundividências

Uma pesquisa do instituto de sondagens especializado em estudos de opinião política e eleitorais Infratest Dimap publicado meio ano após o início da operação russa na Ucrânia, demonstra que em alguns temas relacionados com a Rússia e os EUA, as respostas são significativamente diferentes. Assim, no Leste os “Ossis” tendem a ver a Rússia com maior proximidade, enquanto no Oeste, os “Wessis” inclinam-se visivelmente para uma maior desconfiança da Rússia e simpatia pelos EUA. À pergunta “Sente-se mais atraído pela Rússia ou pelos EUA em relação à cultura, mentalidade e história?”, no Leste, 25% responderam com a Rússia, 23% com os EUA e 46 em nenhum dos dois. A mesma pergunta no Oeste ditou que somente 7% prefere a Rússia e 42% os EUA, enquanto 47% não sentem atração por nenhum dos países.

Da mesma forma, a sensibilidade divide-se novamente quando se pergunta sobre o teor negativo das notícias sobre a Rússia veiculados pela grande imprensa, ou sobre a política de sanções ocidentais. No Leste há uma maior compreensão das posições de Moscovo na atualidade, muitas críticas à expansão da NATO e uma clara aversão à atitude belicista da classe política de Berlim à guerra na Ucrânia.

Um novo cenário político que pode determinar a geopolítica

Assim, entende-se melhor os resultados das eleições europeias no Leste do país, com os quase 29% de votos da AfD, os 14% da estreante BSW e ainda os 5% do Die Linke. Os três partidos que advogam pelo reatamento de relações com a Moscovo, o regresso da energia russa e o fim de entrega de armas a Zelensky somados perfazem quase a metade do eleitorado no território da antiga RDA. Se fosse um país, poder-se-ia dizer que hoje o sistema da UE/NATO não teria a vida nada facilitada para fazer o seu jogo político-beligerante numa “nova RDA”, tal como o faz atualmente desde as instâncias da República Federal da Alemanha.

O mapa eleitoral da Alemanha é atualmente uma imensa mancha negra (CDU/CSU a oeste e Berlim) com pequenas falhas dos Verdes e vermelhas (SPD) e outra grande mancha azul (AfD), que coincide exatamente com os seis estados da antiga RDA, com a exceção de Berlim.

Em setembro haverá eleições em três dos seis estados do Leste (Saxónia, Turíngia e Brandemburgo), e conforme os resultados penderem como esperado para a AfD e a BSW, a nova configuração eleitoral poderá propiciar novas alianças partidárias, abrindo uma dinâmica política totalmente inovadora na Alemanha. Em qualquer caso o Leste pesará mais, podendo forçar Berlim a uma nova Ostpolitik e a uma abordagem diferente tanto em relação à guerra na Ucrânia, como em relação à sua convivência com a Rússia.

Peça traduzida do inglês para GeoPol desde New Eastern Outlook

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Imagem de capa por Acid Pix sob licença CC BY 2.0

geopol.pt

ByRicardo Nuno Costa

Editor-chefe da GeoPol, é licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais, com estudos posteriores em Comunicação Política. Estagiou política internacional no DN, em Lisboa.

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