Ricardo Nuno Costa
Editor-chefe GeoPol
Se há 20 anos não se teve isto em conta, agora é muito difícil voltar atrás. Para aqueles que não contribuíram com o seu grão de areia e permaneceram calados, agora não se podem queixar
É com serenidade que olho para trás, há 20 anos, e me orgulho em ter pelo menos deixado o meu grãozinho de areia ao marcar presença na maior manifestação de sempre da minha então cidade de Barcelona. Mais de um milhão de pessoas de todas as procedências que se juntaram para condenar algo que se sabia que se iria converter numa desgraça. Uma guerra não só ilegal, mas também motivada por interesses meramente económicos e de domínio, e escusada numa mentira espalhafatosa em que só alguém mal formado ou mal informado pôde acreditar.
A invasão do Iraque de 2003 trancou de vez a janela de oportunidade que se abriu em 1989 para o estabelecimento de uma arquitectura de defesa séria e abrangente de carácter global, que tivesse em conta a segurança de todas as nações. Na realidade, desde a guerra da Jugoslávia em 1995, a NATO vinha sempre acrescentando um pouco mais de arbitrariedade à sua política de expansão, beneficiando-se do estado calamitoso da Rússia e a ainda inexistente capacidade militar chinesa.
E assim voltou a ser no Kosovo em 1999, aproveitando a NATO então o seu poderio bruto para fazer aprovar um novo conceito estratégico mais agressivo e fora dos constrangimentos legais da ONU. Foi desse mesmo passo que surgiu guerra do Afeganistão de Clinton, baseada em mais uma mentira, que a NATO aproveitou para sobrepôr-se às Nações Unidas no seu propósito de retirar de Cabul os talibãs supostamente ligados ao 11-S. Uma aventura que custou aos EUA, GB, Alemanha, Austrália e outros países quase duas décadas de «missão» na Ásia Central, com o vergonhoso desfecho que todos vimos.
Com estes antecedentes não era de surpreender que em 2003 Bush tenha decidido invadir o Iraque. É claro que a guerra em si não tinha o propósito principal de "garantir os poços de petróleo" como se diz com frequência. Essa era a parte do negócio menor, para distribuir entre os amigos: até a espanhola Repsol ficou com a sua suculenta fatia, e em especial a Halliburton de Dick Chenney. Mas o motivo crucial foi o anúncio prévio de Saddam querer passar a vender o seu petróleo em euros, o que catapultaria a nova divisa europeia para uma posição alternativa e ameaçadora da hegemonia do dólar na OPEP e todo o sistema petrodólar em que se baseia a moeda de referência mundial.
Seria a tal autonomia estratégica europeia que Washington nunca autorizou. A UE está pensada para ser alinhada e submetida aos desígnios geopolíticos norte-americanos e o euro gravitar na órbita do dólar. Bush não tardou em inventar uma desculpa para resolver a situação. Porque acham que Chirac e Schröder se opuseram a esta guerra?
Afinal não foi também a autonomia monetária a mesma razão por que Obama decidiu tirar Kaddafi da cena em 2012?
E assim com o fracasso em obter o apoio do Conselho de Segurança da ONU, os EUA ameaçaram a invasão do Iraque sem autorização para pretensamente aplicarem resoluções da ONU, da quais se arrogaram saltar por cima. Aquele foi o momento.
A célebre imagem que em Portugal se apresenta como sendo de um quarteto, em mais nenhuma parte do mundo abrange Durão Barroso. Recordo-me bem: em Espanha a fotografia ficou eternizada como o malfadado «Trío de las Azores», e exclui o nosso paisano da moldura, para nossa sorte. O português não tinha ali mais função que a de anfitrião de uma reunião de um patamar do qual não fazia parte. A recompensa do seu bom serviço de conviva foi generosamente retribuída mais tarde, todavia com mais uns quantos encargos. E Aznar só coube na imagem junto a Bush e Blair porque, de forma muito conveniente para Washington e Londres, uma presença europeia (e em todo o caso hispânica) dava o toque de legitimação cosmopolita e politicamente correcta que aquele empreendimento puramente anglo-saxónico carecia.
Foi entre estes três, mas em território português que se decidiu pela invasão do Iraque. Fizeram-no sem uma declaração formal de guerra ou um mandato da ONU, abrindo um perigoso precedente nas relações internacionais que vigora até hoje.
Na altura, o objectivo de remover Saddam foi rapidamente atingido e o Iraque afundou-se numa espiral de violência que tem durado até hoje, deixando centenas de milhares de pessoas mortas e milhões de deslocados. Como consequência, a Europa viu a sua demografia a mudar substancialmente, com a importação de conflitos exógenos, o surgimento do terrorismo islâmico e as tensões sociais que a importação de mão-de-obra barata supõe.
As consequências do desmantelamento do exército iraquiano de núcleo sunita e o caos no país, abriu ainda um vácuo de poder que acabou por ser preenchido por toda a sorte de grupos armados, entre os quais o autoproclamado «Estado Islâmico», que rapidamente se estendeu à vizinha Síria sob os auspícios do Ocidente interessado numa «Primavera Árabe» que redundou noutra catástrofe, com mais violência, mais caos, mais deslocados e milhões de refugiados a rumarem para outras paragens, sobretudo a Europa.
Também logrou que o Irão agora projete a sua influência política e religiosa como nunca por todo aquilo que se conhece como «Crescente Xiita», desde partes do Afeganistão até o Iémen, passando pelo Iraque, Síria e Líbano.
Tony Blair, a quem nunca se reconheceu grande inteligência, nem muito menos honestidade intelectual, veio agora dizer que «não há justificação razoável para invadir um país independente e soberano com um presidente democrático», fazendo referência à invasão da Ucrânia por parte da Rússia, e rejeitando comparações com a invasão do Iraque de há 20 anos. «Pelo menos podemos reconhecer que removemos um déspota do poder e tentámos instalar uma democracia», justificou-se o ex-PM britânico.
Desde aqueles idos anos não tivemos mais boas oportunidades para definir um consenso que nos assegure a paz a todos. A desconfiança das grandes potências instalou-se e tomou o lugar da boa vontade. Se há 20 anos não se teve isto em conta, agora é muito difícil voltar atrás. Para aqueles que não contribuíram com o seu grão de areia e permaneceram calados, agora não se podem queixar. Aquela foi a altura de evitar o desastre. Não era preciso ser muito inteligente, bastava saber ver, ouvir e ler.
Imagem de capa por Adolfo Lujan sob licença CC BY-NC-ND 2.0

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