Parece claro que após décadas na sala, o elefante não pode ser mais ocultado no debate político alemão


“A Alemanha só tem um lugar, que é o lado de Israel”, afirmou o chanceler alemão, Olaf Scholz, no Bundestag, ao justificar a entrega de armas a Telavive. Perguntar-se-á se esta postura parcial é a que se espera de um país que se diz líder do projeto europeu, com ambições geopolíticas num mundo cada vez mais multipolar. Para a maioria global a resposta é não, mas na Alemanha o tema é espinhoso e envolto em tabus. Para cúmulo, a República Federal acaba de aprovar uma lei para impedir o seu debate.

A incapacidade de Berlim poder chamar à razão Telavive ante as suas obrigações internacionais somente corrobora o papel cada vez mais secundário da Alemanha na arena internacional. Se o “motor da Europa” está constrangido no seu papel militar, poderia pelo menos ser uma potência diplomática, fazendo-se valer da sua condição económica. Mas o seu papel é minguante. Porquê?

No seu mais recente livro, “Krieg ohne Ende?” (Guerra sem fim?), o politólogo internacional, Michael Lüders, resume de forma magistral a hipocrisia em redor do envolvimento da Alemanha no projeto sionista desde o início até os dias de hoje. O autor sugere, na forma de subtítulo, “porque precisamos de mudar a nossa atitude em relação a Israel para termos paz no Médio Oriente”.

A Alemanha está perdendo a credibilidade angariada ao longo de décadas ante a maioria global a olhos vistos. Hoje o país não é mais visto com a mesma seriedade a que nos habituaram as últimas décadas, mas antes como uma mera peça instrumental dos EUA nas relações internacionais. Este é também o resultado visível da “política externa feminista” que Baerbock imprimiu enquanto ministra dos negócios Estrangeiros nestes últimos três anos.

A defesa de Israel é “Staatsräson” da República Federal

A Alemanha adotou a defesa da existência de Israel como sua “razão de Estado”. Foi durante uma visita da chanceler Merkel ao Knesset israelita em 2008 que se falou pela primeira vez deste conceito.

No referido bestseller, fica claro que este princípio não e casual, pois corresponde  ao facto de a razão de Estado de Israel ser o Holocausto, cujas responsabilidades se imputam à Alemanha do período 1933-45. Segundo Lüders, o Estado judaico serviu-se do caso Eichmann para dar início à sua razão de Estado com a anuência da RFA, na condição de não fazer nada em relação a muitos outros ex-oficiais nazis que tinham passado para a nova nomenclatura de Bona. O caso mais notório era o de Hans Globke, a eminência parda do novo regime, anteriormente redator das leis raciais de Nuremberga e agora do n°2 de Adenauer, elo de ligação entre os novos serviços secretos BND, a CIA e a NATO.

No oficial das SS Adolf Eichmann, raptado na Argentina pelos israelitas, recaiu simbolicamente todas culpas do período nacional-socialista alemão. Após o seu enforcamento em 1962, por crimes contra o povo judaico durante o Holocausto, na única execução judicial efectuada em Israel até hoje, a RFA reconhece finalmente Israel de forma oficial em 1965, após anos de colaboração (desde 1952) entre as duas entidades. Iniciava-se uma relação complexa e até hoje pouco clara.

Uma parte importante desta relação tem sido a multimilionária indústria militar de âmbito atlantista. O caso mais significativo, de novo pouco claro, terá sido o do escândalo dos seis submarinos de capacidade nuclear e quatro corvetas vendidos durante os governos Merkel a Israel, que acabaram por ser pagos em parte pelos contribuintes alemães.

Num exemplo atual, a politóloga especialista no Médio Oriente, Kristin Helberg, estranhava no canal público em outubro, que Berlim não estivesse a ajudar Israel com armas defensivas contra um hipotético ataque iraniano – que no seu ponto de vista seria legítimo –, mas sim através da entrega de munições que são usadas sobre populações civis, ao arrepiu da convenção de Genebra.

Alemanha implicada num genocídio

Com o apoio armamentista aos ataques israelitas a civis em Gaza e no Líbano, a Alemanha incorre não só numa ilegalidade internacional que lhe está custando os atuais casos abertos no TPI e no TIJ, como também vê a sua reputação manchada nos grandes foros internacionais pela maioria global, da qual depende o seu modelo industrial de exportações.

No dia 14 de outubro, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, Sebastian Fischer, afirmou em conferência de imprensa em Berlim, que no governo alemão “não vemos sinais de que Israel esteja a cometer genocídio em Gaza” e que “Israel tem, sem dúvida, o direito à autodefesa contra o Hamas”, para dois dias depois, o chanceler Scholz dizer em voz alta no Bundestag que “haverá mais entregas de armas – Israel pode sempre contar com isso.”

Crítica a Israel será proibida

No seu percurso filo-sionista cada vez radical, a classe política alemã aprovou uma nova resolução “para proteger, preservar e fortalecer a vida judaica na Alemanha”, para a qual só foram chamados os partidos da coligação de governo e a CDU/CSU, sem consultar a AfD e a BSW. A controversa e pouco transparente resolução promete perseguir “o antissemitismo cada vez mais aberto e violento nos meios extremistas de direita e islamistas, bem como a uma abordagem relativizadora e ao aumento do antissemitismo anti-imperialista de esquerda”.

O documento refere que os “casos de antissemitismo aumentaram” após o ataque do Hamas a Israel há um ano, mas não refere que a lei alemã passou entretanto a considerar antissemita a manifestação de várias expressões a favor da causa palestiniana como o slogan “do rio até ao mar a Palestina será livre”, entre outros slogans, cânticos, insígnias ou mesmo posts publicados na internet, agora considerados e contabilizados como crimes “antissemitas” passíveis de punição.

O Bundestag reafirma a sua decisão de garantir que nenhuma organização ou projeto que difunda o antissemitismo, questione o direito de Israel existir, apele a um boicote a Israel ou apoie ativamente o movimento BDS receba apoio financeiro”, diz ainda o documento.

Recentemente, a reitora do Berlin Institute for Advanced Study, Barbara Stollberg-Rilinger, queixava-se que a liberdade de estudo da comunidade científica está massivamente ameaçada. “O que distinge o antissemitismo da legítima crítica ao governo de Israel?”, perguntava. “E sobretudo, quem define o que é antissemitismo? Isto não está nada claro. A definição é vaga e deixa um enorme espaço para a insegurança jurídica”, asseverava.

O divórcio entre classe política e percepção pública

É claro que o texto da nova lei visa claramente excluir a AfD do debate público, usando o chavão mágico da “extrema-direita”, mas também pesa sobre a BSW, onde a causa palestiniana e a visão multipolarista são claros. Um recente estudo do instituto de investigação Forsa para a Stern/RTL corrobora a clara clivagem que há entre a Alemanha real e a institucional. Enquanto a primeira não quer o envolvimento do país na guerra do Médio Oriente, a classe política tem garantido o o imprescindível apoio a Israel, como “razão de Estado”. Desta forma, os votantes de todos partidos alemães opõem-se de forma inequívoca a novas entregas de armas a Telavive. À cabeça está o eleitorado da BSW (85%), seguido da AfD (75%), mas também 60% dos votantes do SPD, 56% dos da CDU/CSU e 52% do FDP. Curiosamente o eleitorado dos Verdes mostrava um empate de 50-50. No total nacional, isto corresponde a 60% da cidadania, com a diferença no leste a ser mais expressiva (75% contra).

O caso da AfD é mais curioso, porque sendo um partido que nasceu da contestação ao sistema nos temas não só da imigração, mas também da política externa e outros e a sua base eleitoral ser claramente crítica com a política ocidentalista de Berlim, na sua liderança há também uma presença desproporcional do elemento filo-sionista que em nada difere da restante classe política.

Segundo uma outra sondagem também de outubro, da Infratest Dimap para a televisão pública ARD e do diário Welt, apenas 19% dos apoiantes da AfD consideram que Israel é um parceiro confiável, uma percentagem visivelmente menor que na CDU/CSU (34%) no SPD (36%) e nos Verdes (38%).

AfD distancia-se do consenso sionista

Provavelmente por ter sabido interpretar esta discrepância entre liderança e base, o colíder da AfD, Tino Chrupalla, exigiu o fim da ajuda a Telavive e da relação “unilateral” da Alemanha com o Estado judaico. “Com o fornecimento de armas a Israel, estão a aceitar a desumanização de todas as vítimas civis de ambos os lados. Não estão a contribuir para o desanuviamento, mas sim a deitar achas para a fogueira”, afirmou. É “tempo de olhar de forma crítica e objetiva para o governo israelita”.

Estas afirmações vêm num momento de uma clara deriva de sentido multipolar no seio do partido. De resto, o princípio da neutralidade é a linha oficial da AfD. No próprio programa eleitoral europeu de 2024, diz-se que “o fornecimento de armas a zonas de guerra não serve a paz na Europa”. Sob pena de se tornar um partido mais, a AfD parece querer ir de encontro com a sensibilidade da maioria dos alemães e da sua base social de apoio também em temas de política externa, hoje muito debatidos pela generalidade do público.

Parece claro que após décadas na sala, o elefante não poderá ser mais ocultado no debate político alemão.

Peça traduzida do inglês para GeoPol desde New Eastern Outlook

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ByRicardo Nuno Costa

Editor-chefe da GeoPol, é licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais, com estudos posteriores em Comunicação Política. Estagiou política internacional no DN, em Lisboa.

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