A questão que se impõe é se vai continuar o caminho abertamente belicista do seu antecessor ou deixar a “empresa Ucrânia” para segundo plano e a conta para os alemães pagarem


Poucas horas após o anúncio da vitória de Donald Trump nos EUA, o chanceler alemão Olaf Scholz anunciava em Berlim a demissão do n°3 do seu governo, o ministro das Finanças liberal Christian Lindner. Ato seguido, os dois outros ministros do FDP (Justiça e Educação), deixavam os seus cargos, pondo fim à mais esdrúxula coligação governamental da história da República Federal, o “governo do semáforo”, entre os vermelhos do SPD, os Verdes e os amarelos do FDP.

“Apresentei mais uma vez ao parceiro de coligação do FDP uma proposta abrangente com a qual podemos colmatar o défice do orçamento federal sem mergulhar o nosso país no caos”, assente em quatro pontos-chave: Assegurar custos de energia acessíveis, garantir os postos de trabalho na indústria automóvel e nas suas muitas empresas fornecedoras, melhorar as possibilidades de dedução fiscal, para que as empresas invistam na Alemanha e aumentar o nosso apoio à Ucrânia. “Depois das eleições nos EUA, isto envia um sinal muito importante: podemos confiar em nós mesmos”, afirmou o chanceler.

Scholz traçou um quadro desolador: “A nossa economia está à deriva. As empresas estão a debater-se com o fraco comércio mundial. Os preços da energia em resultado da guerra de agressão russa, o custo da modernização da nossa economia […] As nossas empresas precisam de apoio, e precisam-no agora.” Ademais, o líder do governo contava que tudo isto fosse feito no quadro da “modernização que respeita o clima”, uma exigência dos parceiros dos Verdes. Lindner terá respondido que é impossível atender a todas estas exigências e Scholz pôs termo a uma relação que desde o primeiro momento se mostrou difícil.

Crise económica e indústria automóvel ameaçada

Entretanto a economia continua estagnada: 2024 vai ser o segundo ano de crescimento negativo, com perspetivas muito pouco animadoras para 2025. Sobretudo para a indústria automóvel, com margens muito curtas, que terão de suportar a concorrência aguerrida da China e dos EUA num cenário de custos energéticos insuportáveis. Durante a sua campanha eleitoral, Trump ameaçou impor tarifas extras à indústria automóvel europeia, uma medida que poderia levar Berlim a ter de intervir no sector.

Em outubro, a Volkswagen anunciou pela primeira vez nos seus 87 anos de história o encerramento de pelo menos três fábricas na Alemanha, redução salarial de 10% e cortes no seu plantel, sem mencionar quantos (em setembro a imprensa falou de 30,000 despedidos, mas a VW na altura desmentiu).

Na Rússia, o ministro da Indústria e do Comércio, Anton Alikhanov, convidou os milhares de trabalhadores despedidos da Volkswagen a irem trabalhar para a Rússia, nomeadamente para a fábrica dos SUV Jetta, uma joint venture entre a VW e a chinesa FAW, no enclave de Kalinningrado, região do Báltico que perserva as fortes ligações históricas e culturais à Alemanha. Ali poderão obter a cidadania russa ao fim de cinco anos.

Começam a ser indisfarçáveis os efeitos do corte de energia russa nas indústrias intensivas e transformadoras alemãs, mas também o impacto que representaram as políticas restritivas durante a pandemia, em especial para o Mittelstand, as PME’s e não só, que jogam na economia alemã um papel crucial para a estabilidade da classe média. A crise é profunda, pois destapa ainda a realidade económica ocultada durante anos pelos governos Merkel da União (CDU/CSU).

Eleições em março

Após a declaração de Scholz, o líder da União, Friedrich Merz, pediu de imediato uma moção de censura ao governo, mas novas eleições só se realizarão em março (meio ano antes do período normal do termo da legislatura). A coligação democrata-cristã será o partido mais votado, mas com quem poderá formar governo é uma ainda uma incógnita. Com um FDP quase inexistente, não terá maioria suficiente, com a extrema-direita será muito difícil e com a BSW ou os Verdes ainda menos. Resta uma Grande Coligação com o SPD, também pouco provável. A instabilidade institucional e a incerteza serão o novo normal.

A União acarta nos ombros as políticas pró-imigração de quatro governos consecutivos (2004-2020) e os vários dos casos de corrupção mais graves da história do país, dos quais mantém com toda a naturalidade alguns importantes protagonistas na sua bancada parlamentar.

“A União só pode ser pior”

Do lado esquerdo do Bundestag, a líder do novo grupo da BSW, Sahra Wagenknecht, previu que com um governo da União a situação precária do país só poderá piorar, pois na origem da atual crise está o apoio de Berlim de pelo menos 37 mil milhões de euros ao regime de Kiev e o fundo especial para financiar as Forças Armadas de 100 mil milhões de euros, que tem na União um apoio ainda maior do que no atual governo.

Merz exigiu recentemente a Scholz um “ultimato de 24 horas a Putin”. Segundo o líder da União, o tema resume-se a uma questão de autoconfiança: “Se nós, no Ocidente, tivermos medo de nos defender, então Putin já ganhou metade da batalha. É uma questão de auto-confiança”, disse. Merz acredita que pode intimidar Putin com o fornecimento de mísseis de longo alcance alemães Taurus, com os quais Kiev deveria atacar cidades russas. Já o responsável de política externa, Roderich Kiesewetter, dizia em janeiro em direto na televisão pública desde Kiev, que “a guerra deve ser levada à Rússia. As instalações militares e os quartéis-generais russos devem ser destruídos.” Este é o nível atual da CDU/CSU.

Importa saber também qual será realmente a postura norte-americana em relação à NATO e à Ucrânia assim que Trump assuma o poder. Uma incógnita que ditará a sorte dos atlantistas europeus, que ameaçam ficar sozinhos na sua defesa da hegemonia norte-americana no velho continente.

A queda do semáforo não é mero acidente

A situação crítica da Alemanha representa o regresso do “homem doente da Europa” dos anos 90, entretanto maquilhado com políticas neoliberais e de “laisser fair” e endividamento público durante um quarto de século.

O sistema de ensino na Alemanha tem atualmente um déficit de 68 mil milhões de euros de investimento segundo o Sindicato da Educação e Ciência GEW, a infraestrutura do país não tem a manutenção que requere, os combóis chegam frequentemente atrasados, milhares de consultórios médicos estão a fechar e faltam centenas de milhares de lugares nas creches. O ambiente de despreocupação e de harmonia de há 20, 10 ou mesmo de há 5 anos é história.

A questão energética

Como já aqui foi mencionado noutros contextos, um dos problemas de fundo do atual estado do país tem a ver com o acesso às fontes energéticas a preços viáveis. Os contratos de longo prazo de compra de petróleo (desde 1963) e de gás (desde 1972) à Rússia, garantiram à Alemanha (e consequentemente ao projecto europeu), décadas de competetividade industrial onde assentou todo o seu modelo de exportações. Uma parceria energética que Washington sempre viu com maus olhos, mas que se absteve de interferir de forma directa até ao golpe de Maidan em 2014 e à explosão dos gasodutos Nord Stream em 2022. Se estas ações coincidiram com a política dos governos democratas de Obama-Biden e de Biden-Harris, não se deve esperar que uma nova administração Trump reverta este processo, tal como não o fez durante a sua primeira presidência. A questão que se impõe é se vai continuar o caminho abertamente belicista do seu antecessor ou deixar a “empresa Ucrânia” para segundo plano e a conta para os alemães pagarem.

Peça traduzida do inglês para GeoPol desde New Eastern Outlook

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ByRicardo Nuno Costa

Editor-chefe da GeoPol, é licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais, com estudos posteriores em Comunicação Política. Estagiou política internacional no DN, em Lisboa.

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