Se a função da rainha foi rebatizar o Império como Commonwealth, transformando o massacre dos Mau Mau em medalhas de ouro para os corredores de longa distância quenianos, a função de Carlos será rebatizar como Renovação Verde a marcha da morte liderada pelas corporações transnacionais
Qualquer pessoa no Reino Unido que tenha imaginado viver numa democracia representativa - uma democracia em que os líderes são eleitos e responsáveis perante o povo - terá um despertar rude durante os próximos dias e semanas.
Os horários da televisão foram postos de lado. Os apresentadores devem usar preto e falar em voz baixa. As primeiras páginas são uniformemente sombrias. Os meios de comunicação britânicos falam com uma voz única e respeitosa sobre a rainha e o seu legado incontestável.
Westminster, entretanto, foi despojada da esquerda e da direita. Os partidos Conservador, Democrata Liberal e Trabalhista puseram de lado a política para se entristecerem como um só. Até mesmo os nacionalistas escoceses - supostamente tentando livrar-se do jugo de séculos de domínio inglês presidido pela monarca - parecem estar de luto derradeiro
Os problemas urgentes do mundo - desde a guerra na Europa até uma catástrofe climática iminente - já não são de interesse ou relevância. Podem esperar até que os britânicos surjam de um trauma nacional mais premente.
A nível interno, a BBC disse aos que enfrentam um longo Inverno em que não poderão dar-se ao luxo de aquecer as suas casas que o seu sofrimento é "insignificante" em comparação com o da família de uma mulher de 96 anos que morreu pacificamente no colo do luxo. Eles também podem esperar.
Neste momento não há espaço público para ambivalência ou indiferença, para reticências, para o pensamento crítico - e muito menos para o republicanismo, mesmo que quase um terço do público, sobretudo os jovens, desejem a abolição da monarquia. O establishment britânico espera que cada homem, mulher e criança cumpram o seu dever baixando a sua cabeça.
A Grã-Bretanha do século XXI nunca se sentiu tão medieval.
Elogios de parede a parede
Há razões pelas quais é necessário um olhar crítico neste momento, uma vez que o público britânico está encurralado num luto reverencial.
Os elogios de parede a parede destinam-se a encher as nossas narinas com o perfume da nostalgia para cobrir o fedor de uma instituição em apodrecimento, uma no coração do próprio establishment que faz o elogio.
A exigência é que todos mostrem respeito pela rainha e pela sua família e que agora não é o momento para críticas ou mesmo análises.
De facto, a família real tem todo o direito de ser deixada em paz para sofrer. Mas a privacidade não é aquilo que eles, ou o establishment a que pertencem, anseiam.
A perda dos royals é pública em todos os sentidos. Haverá um funeral de Estado luxuoso, pago pelo contribuinte. Haverá uma coroação igualmente pródiga do seu filho, Carlos, também paga pelo contribuinte.
E, entretanto, o público britânico será alimentado à força pelas mesmas mensagens oficiais por todos os canais de televisão - não de forma neutra, imparcial ou objectiva, mas como propaganda do Estado - paga, mais uma vez, pelo contribuinte britânico.
A reverência e a veneração são os únicos tipos de cobertura da rainha e da sua família que são agora permitidos.
Mas há um sentido ainda mais profundo em que os royals são figuras públicas - mais do que aquelas que são empurradas para a ribalta pela sua celebridade ou talento para acumular dinheiro.
O público britânico pagou por inteiro a conta da vida privilegiada dos reais e mimou o luxo. Tal como os reis de outrora, deram a si próprios o direito de encerrar vastas extensões das Ilhas Britânicas como o seu domínio privado. A morte da rainha, por exemplo, significa que o duque e a duquesa de Cambridge acabam de acrescentar toda a Cornualha aos seus bens.
Se alguém é propriedade pública, são os royals britânicos. Eles não têm o direito de reclamar uma isenção de escrutínio precisamente quando o escrutínio é mais necessário - uma vez que os privilégios anti-democráticos da monarquia passam de um conjunto de mãos para outro.
A exigência de silêncio não é um acto politicamente neutro. É uma exigência de conluio num sistema corrupto de regime do establishment e de privilégio hierárquico.
Continuidade do reinado
Sem dúvida, a rainha desempenhou as suas funções supremamente bem durante os seus 70 anos no trono. Como os especialistas da BBC continuam a dizer, ela ajudou a manter a "estabilidade" social e garantiu a "continuidade" do governo.
O início do seu reinado em 1952 coincidiu com o seu governo que ordenou a supressão da revolta da independência Mau Mau no Quénia. Grande parte da população foi colocada em campos de concentração e utilizada como mão-de-obra escrava - se não fossem assassinados pelos soldados britânicos.
No auge do seu reinado, 20 anos mais tarde, as tropas britânicas receberam luz verde para massacrar 14 civis na Irlanda do Norte numa marcha de protesto contra a política britânica de encarcerar católicos sem julgamento. Os baleados e mortos estavam a fugir ou a cuidar dos feridos. O establishment britânico supervisionou inquéritos de encobrimento sobre o que ficou conhecido como "Bloody Sunday" (Domingo Sangrento).
E nos crepúsculos anos do seu reinado, o seu governo espezinhou o direito internacional, invadindo o Iraque com o pretexto de destruir armas de destruição maciça inexistentes. Durante os longos anos de uma ocupação conjunta britânica e norte-americana, é provável que mais de um milhão de iraquianos tenham morrido e outros milhões tenham sido expulsos das suas casas.
A rainha, claro, não foi pessoalmente responsável por nenhum desses acontecimentos - nem pelos muitos outros que ocorreram enquanto ela mantinha um silêncio digno.
Mas ela deu cobertura real a esses crimes - em vida, tal como está agora a ser recrutada para fazer na morte.
Foram as suas Forças Armadas Reais que mataram o Joãozinho Forasteiro.
Foi a sua Commonwealth que reembalou o império britânico de bota de cano alto como uma nova forma de colonialismo, mais mediatizável.
Foi nas Union Jacks, nos Beefeaters, nos táxis negros e nos chapéus de côco – a parafernália ridícula de alguma forma associada aos royals na mente do resto do mundo – que o novo poder do outro lado do Atlântico confiou regularmente ao seu companheiro para acrescentar um folheado de suposta civilidade aos seus feios desígnios imperiais.
Paradoxalmente, dada a história dos EUA, o carácter da relação especial baseava-se em ter uma rainha muito amada e estimada, dando "continuidade" à medida que os governos britânico e americano iam rasgando o livro de regras sobre as leis da guerra em lugares como o Afeganistão e o Iraque.
A raina de teflon
E aí reside o busílis. A rainha está morta. Viva o Rei!
Mas o rei Carlos III não é a rainha Isabel II.
A rainha teve a vantagem de ascender ao trono numa época muito diferente, quando os meios de comunicação evitaram escândalos reais a menos que fossem totalmente inevitáveis, como por exemplo quando Eduardo VIII provocou uma crise constitucional em 1936 ao anunciar o seu plano de casar com uma "plebeia" norte-americana.
Com a chegada de notícias de 24 horas por dia nos anos 80 e o posterior advento dos media digitais, os royals tornaram-se apenas mais uma família de celebridades como os Kardashians. Eram um jogo legítimo para os paparazzi. Os seus escândalos vendiam jornais. As suas indiscrições e rixas chimavam com os enredos de novelas cada vez mais obscenos e incendiários da época na televisão.
Mas nada daquela sujidade agarrada à rainha, mesmo quando recentemente foi revelado – sem qualquer consequência – que os seus funcionários tinham secretamente e regularmente manipulado legislação para a isentar das regras que se aplicavam a todos os outros, sob um princípio conhecido como o Consentimento da Rainha. Um sistema de apartheid que beneficiava apenas a família real.
Ao permanecer acima da briga, ela ofereceu "continuidade". Mesmo a recente revelação de que o seu filho, o príncipe Andrew, se envolveu com raparigas jovens ao lado do falecido Jeffrey Epstein, e manteve a amizade mesmo depois de Epstein ter sido condenado por pedofilia, nada fez para prejudicar a monarca de teflon.
Carlos III, pelo contrário, é melhor lembrado - pelo menos pela metade mais velha da população - por ter estragado o seu casamento com uma princesa de conto de fadas, Diana, morta em circunstâncias trágicas. Ao preferir Camila, Carlos trocou a Cinderela pela madrasta malvada, Lady Tremaine.
Se o monarca é a cola narrativa que mantém a sociedade e o império juntos, Carlos poderia representar o momento em que esse projecto começa a desmoronar-se.
É por isso que os fatos pretos, as vozes baixas e o ar de reverência são tão desesperadamente necessários neste momento. O establishment está em frenético modo de detenção enquanto se preparam para iniciar a difícil tarefa de reinventar Carlos e Camila no imaginário público. Carlos deve agora fazer o trabalho pesado para o establishment que a rainha conseguiu durante tanto tempo, mesmo quando ela se tornou cada vez mais frágil fisicamente.
Os contornos desse plano têm sido visíveis há algum tempo. Carlos será rebatizado como o rei do Green New Deal. Ele irá simbolizar a liderança global da Grã-Bretanha contra a crise climática.
Se a função da rainha foi rebatizar o Império como Commonwealth, transformando o massacre dos Mau Mau em medalhas de ouro para os corredores de longa distância quenianos, a função de Carlos será rebatizar como Renovação Verde a marcha da morte liderada pelas corporações transnacionais.
É por isso que agora não é tempo para silêncio ou obediência. Agora é precisamente o momento - à medida que a máscara desliza, uma vez que o establishment precisa de tempo para reformar a sua pretensão de deferência - para avançar no ataque.
Peça traduzida do inglês para GeoPol desde MintPressNews
As ideias expressas no presente artigo / comentário / entrevista refletem as visões do/s seu/s autor/es, não correspondem necessariamente à linha editorial da GeoPol
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