A estratégia geopolítica de Donald Trump durante a sua próxima presidência reflectirá uma tentativa aberta de reforçar a hegemonia dos EUA nos mares, enredando as potências rivais China e Rússia


Este vai ser o século dos mares. Os conflitos navais e o domínio de diferentes rotas marítimas vão acontecer, e veremos isso moldar o próximo nível de comércio em todo o mundo.

As rotas de abastecimento e de exportação do que a China consome e produz são cruciais para a existência do país. A Rota da Seda do Ártico é uma dessas rotas cruciais para os chineses, juntamente com o Canal do Panamá e o Estreito de Malaca. Os russos chamam à rota árctica a Rota Marítima do Mar do Norte. Este é um ambiente geoestratégico pós-Canal de Suez, uma vez que a distância, o tempo e os custos serão consideravelmente reduzidos. É por isso que muito está em jogo.

O conceito de enredamento

No centro desta estratégia está o conceito de enredamento (ou emaranhamento) – forçando estas nações a confrontos que consomem recursos em múltiplas frentes, ao mesmo tempo que expandem a influência dos EUA a nível global.

A conceptualização de “enredamento” como estratégia geopolítica, em particular no contexto de adversários em excesso, tem sido desenvolvida e articulada de forma proeminente por instituições como a RAND Corporation. O relatório Extending Russia da RAND (2019) descreve como os Estados Unidos podem explorar as vulnerabilidades de nações rivais como a Rússia para as forçar a assumir compromissos dispendiosos e insustentáveis. Este relatório sublinha a utilização estratégica de medidas políticas, económicas e militares para drenar recursos (incluindo a fuga de cérebros), desviar a atenção e promover a mudança de regime.

Stranglehold: The Context, Conduct and Consequences of an American Naval Blockade of China (2013) do Carnegie Endowment explora estratégias para enfraquecer a resiliência económica da China através de bloqueios marítimos. Destaca a interdependência das tácticas militares e económicas nas estratégias modernas de enredamento.

Num sentido mais lato, as raízes do “enredamento” também podem ser encontradas nas estratégias de contenção da era da Guerra Fria. Figuras como George Kennan, o arquiteto da política de contenção dos Estados Unidos contra a União Soviética, lançaram as bases para as abordagens modernas de enredar os adversários através de uma pressão calculada em várias frentes, como o Long Telegram (1946) e The Sources of Soviet Conduct (publicado na edição de julho de 1947 da Foreign Affairs). Desde então, esta concepção foi adaptada para visar potências emergentes como a China e a Rússia, reflectindo a continuidade do pensamento estratégico dos EUA.

Além disso, Zbigniew Brzezinski publicou The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives (1997), onde discute a importância estratégica de controlar a Eurásia para manter a hegemonia global dos EUA. A sua abordagem envolve o envolvimento e a manipulação de conflitos regionais para servir objectivos geopolíticos mais vastos.

Embora não se limite a um único indivíduo, o desenvolvimento do enredamento como estratégia deliberada reflecte as contribuições de grupos de reflexão, decisores políticos e estrategas militares que pretendem manter o domínio dos EUA num mundo cada vez mais multipolar.

A estratégia do enredamento sublinha uma mudança da guerra tradicional para os conflitos económicos, informativos e por procuração. Embora estas estratégias ofereçam um meio de contrariar os rivais sem um confronto militar em grande escala, são frequentemente criticadas por aumentarem as tensões e criarem instabilidade a longo prazo.

Gronelândia, a nova pedra angular da estratégia de enredamento dos EUA

A Gronelândia e a região do Ártico tornaram-se pontos focais desta abordagem, uma vez que ofereciam potencial de recursos (minerais de terras raras, petróleo e gás) e acesso estratégico às rotas comerciais emergentes do Ártico, bem como um local privilegiado de defesa anti-míssil intercontinental. O interesse de Trump em “comprar” a Gronelândia sublinhou uma agenda séria de segurança da região para contrariar a Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” da China e o domínio da Rússia nas rotas marítimas do Ártico.

O Ártico, com o degelo das calotas polares a abrir novas rotas de navegação, constitui uma alternativa aos tradicionais pontos de estrangulamento marítimo, como o Estreito de Malaca e o Canal do Panamá. O controlo da Gronelândia permite aos EUA monitorizar e potencialmente perturbar estas rotas, visando os fluxos comerciais da China e da Rússia.

Entretanto, a estratégia para o Ártico foi complementada por pressões sobre a Gronelândia para que rejeitasse os investimentos chineses em minerais de terras raras, vitais para a tecnologia e os sistemas de armamento modernos, e privilegiasse uma oferta americana mais baixa. Ao assegurar o domínio americano na Gronelândia, os EUA procuram isolar a China de recursos cruciais e reforçar as suas próprias cadeias de abastecimento.

Desde 2013, os EUA têm procurado sobrecarregar a Rússia através de uma escalada de tensões em regiões como a Europa Oriental e o Ártico, obrigando Moscovo a comprometer recursos significativos para contrariar a presença da NATO. Esta abordagem reflecte estratégias de longa data dos EUA, como as descritas no relatório Extending Russia da RAND Corporation, que defendia a provocação de respostas russas dispendiosas através de pressões militares e económicas.

Estes movimentos faziam parte de uma agenda imperialista mais ampla – cercar adversários, monopolizar recursos estratégicos e manter o controlo sobre as rotas comerciais globais.

As recentes manobras geopolíticas de Trump podem ter parecido pouco convencionais, mas alinharam-se com o objetivo de longa data dos Estados Unidos de eliminar os seus concorrentes e assegurar o seu estatuto de potência dominante mundial

Em conclusão, o degelo do Ártico devido às alterações climáticas abriu novas rotas marítimas, que reduzem drasticamente os tempos de navegação entre a Europa e a Ásia. A Gronelândia, posicionada estrategicamente ao longo desta rota, tornou-se um ponto fulcral. Oferece um potencial controlo sobre o acesso a estas águas, suscitando um interesse renovado por parte de potências mundiais como os EUA, a China e a Rússia. Os vastos recursos inexplorados da Gronelândia e a sua localização estratégica em termos de defesa aumentam ainda mais a sua importância geopolítica.

Peça traduzida do inglês para GeoPol desde New Eastern Outlook

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ByRicardo Martins

Ricardo Martins é doutorado em Sociologia com especialização em políticas da UE e Relações Internacionais. É investigador convidado na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos. Escreve para a New Eastern Outlook.

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