Marco Rubio pode agora queixar-se o que quiser, não tem outra opção que se somar ao mundo multipolar em pleno andamento
Marco Rubio, que até há pouco era um rígido “never Trump“, a quem chamava, entre outras lindezas, de “vigarista”, mas que será a partir da próxima semana seu secretário de Estado, veio ontem queixar-se da situação da economia e comércio globais. “Se continuarmos assim, em menos de 10 anos, estaremos à mercê da vontade da China para tudo o que fazemos no nosso quotidiano”, uma vez que Pequim “já controla as cadeias de abastecimento de todos os minerais críticos” à escala global, afirmou. Agora sugere “mudar de rumo” urgentemente para que o cenário de predomínio chinês não se materialize.
O senador cubano-americano, que é conhecido pelo seu anti-comunismo fossilizado, já se manifestava há dois anos nervoso pelo facto do Brasil ter chegado a um acordo com a China para fazer o comércio bilateral nas suas respectivas divisas em prejuízo do uso do dólar. “Eles estão a criar uma economia paralela em redor do mundo, totalmente separada do dólar”, queixava-se então de forma dramática, aferindo que “em cinco anos já não poderemos fazer mais sanções”. Note-se o drama deste “liberal”.
Rubio é o espelho da esquizofrenia da classe dirigente dos EUA. Até há tão pouco tempo eram estes mesmos paladinos do “Estado mínimo”, que desdenhavam tudo o que a China estava a fazer, pois o “socialismo não funciona”, diziam. Os mais arrogantes nem se quer valorizaram o facto da RPC ter tirado da pobreza 800 milhões de pessoas em 50 anos, que equivale dizer 10% da população mundial. Como nunca valorizarão o facto da economia chinesa ter sido a razão pela qual o mundo não caiu numa recessão generalizada após 2020. Aliás, como já o tinha sido depois da crise financeira de 2008, ao se ter convertido no motor da economia mundial.
O Ocidente equivocou-se ao pensar que o Estado chinês seria diluído pela lógica do capitalismo e que a mão invisível do mercado tomaria conta da economia planificada e dos planos centralizados do PCC (há quem chame de Partido da Civilização Chinesa), quando admitiu o gigante asiático como membro da OMC em 2001. Tomaram como um detalhe de importância marginal o facto do país ter mais de mil milhões de habitantes e uma história de cinco mil anos, com uma memória viva da humilhação a que foi sujeito por parte da interferência ocidental.
Aconselho a leitura do “The Long Game” (2022), de Rush Doshi, não pela ideia que o autor quer fazer passar, mas antes pelo contrário. Trata-se de um trabalho desonesto, que parte da premissa perversa, de que o mundo deve ser dominado pelos EUA e pelos “valores democráticos e liberais”. Desta forma, o autor, que tal como Rubio pensa de forma limitada e parece negar as mudanças estruturais globais das últimas três décadas, não concebe a prevalência da China nem sequer na sua área de influência imediata, a Ásia. Assim, Doshi vê com toda a naturalidade que os EUA tenham quase 800 bases militares espalhadas pelo globo e inúmeros pontos de estrangulamento pensados para paralisar o comércio global e sufocar a China, mas repudia que esta tenha uma só base militar no estrangeiro (no Djibuti), ou quaisquer iniciativas económicas e comerciais com o resto do mundo, tanto de âmbito bilateral como multilateral. São todas “nebulosas” e “obscuras”, mas não consegue explicar porquê.
O que é interessante a expansão comercial que o autor acusa a China, não é nem mais nem menos do que aquilo que foi feito pelos EUA durante décadas, com a diferença que esta tem sabido levar em consideração os legítimos interesses dos parceiros em geral de uma forma muito mais sofisticada e inteligente, e que ao contrário dos EUA, chegou ao elevado nível de correlação com os seus parceiros sem disparar um tiro, nem muito menos bombardeado populações civis, nem os ter submetido militarmente ou aos desígnios da sua economia e moeda, por exemplo.
Doshi, que é conselheiro da Brookings Institution e de uns quantos outros ‘think tanks’ mais, vê como inevitável a ascensão da China, mas acha que os EUA podem neutralizar o seu avanço e evitar que esta domine a Ásia. Cita vários autores, com ideias ligeiramente diferentes e insiste num conceito vago e apresentando poucas provas de que a China quer construir um mundo baseado nos seus valores. O livro vale pela riqueza de exemplos citados e referências históricas e bibliográficas, mas peca por partir de princípios equivocados.
A contradição maior de Doshi, que deve servir de guião a Marco Rubio, é que o autor, por um lado exalta as virtudes teóricas do liberalismo, mas acaba por propor como solução para o atual choque entre os interesses de EUA e China, uma imitação daquilo que a China tem sabido fazer ao longo das últimas décadas com o resto do mundo: presença fundamental do Estado, planeamento, infraestruturas, diplomacia, multilateralismo, enfim, tudo aquilo que os EUA não quiseram fazer quando eram a maior potência económica do planeta. Marco Rubio pode agora queixar-se o que quiser, não tem outra opção que se somar ao mundo multipolar em pleno andamento.
Peça traduzida do inglês para GeoPol desde New Eastern Outlook
As ideias expressas no presente artigo / comentário / entrevista refletem as visões do/s seu/s autor/es, não correspondem necessariamente à linha editorial da GeoPol
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