O alegado “multipolarismo trumpista” resolve-se numa “construção ideal” em que não só os Estados Unidos mantêm inalterada a sua primazia hegemónica de apropriação espacial e força coerciva a nível global

De acordo com A. Dugin, o “Trumpismo” (que assume o estatuto de uma verdadeira ideologia) seria uma espécie de “força multipolarista passiva”, no sentido em que nada teria contra a realização de uma ordem global multipolar e, consequentemente, nada faria de concreto para a impedir.

Uma tal consideração decorreria de uma interpretação problemática (a meu ver) da chamada “Doutrina Monroe”, que é (também a meu ver) indevidamente colocada em oposição à “Doutrina Wilson”; como se as duas abordagens geopolíticas estivessem nos antípodas desse aglomerado que poderíamos definir muito genericamente como “ideologia americana” (fundada essencialmente nos temas de origem teológico-protestante da “predestinação”, do “excepcionalismo” e do “mito da fronteira”). Tendo lido (e não esquecido) Carl Schmitt, por outro lado, tenho tendência para considerar a “Doutrina Monroe” como a primeira manifestação real do imperialismo americano e, consequentemente, a “Doutrina Wilson” como a sua evolução, não necessariamente em contraste com a primeira.

Schmitt, aliás, lembra-nos que a insistência no tema da “predestinação” (a crença na “predestinação”) é “apenas a intensificação extrema da consciência de pertencer a um mundo diferente do mundo corrupto e condenado ao declínio”. Foi assim para os Padres Peregrinos que deixaram a Europa; é assim para o “trumpismo”, que procura impor-se como algo de novo em relação à decadente “cultura progressista” de parte das elites oligárquicas norte-americanas. Neste sentido, ainda de acordo com A. Dugin, a nova eleição de Donald J. Trump representaria uma espécie de “revolução”.

A realidade parece ser bem diferente. O “Trumpismo”, de facto, para um estudioso atento da geopolítica (em todos os seus aspectos), não pode deixar de parecer uma das inúmeras formas de “reprodução constante de formas de pertença”. Tomemos um exemplo clássico. No final dos anos 70, entre escândalos e a desastrosa derrota no Vietname, os Estados Unidos pareciam ter perdido o seu impulso vital como líder do chamado “mundo livre”. A ascensão de Ronald Reagan à Casa Branca (mais ou menos nos mesmos anos que o triunfo empresarial altamente facilitado de Trump) foi entendida como o início de uma “nova era”, sob a bandeira de um espírito patriótico renovado, intimamente ligado ao mito do mercado livre e do neoliberalismo.

Nesse caso, os “espaços livres” do mercado substituíram de alguma forma o espírito de conquista da fronteira e a consequente apropriação de novos espaços. Do mesmo modo, a eleição de Trump é percepcionada pelos “apologistas do Ocidente” como uma catarse necessária a partir da qual recomeçar a reestruturar (e talvez expandir) o seu mundo corrupto, ensaiado pela decadência, e próximo da derrota em vários teatros.

A este respeito, aliás, há que ter em conta que, desde o final do século XIX (precisamente quando o “mito da fronteira” estava a chegar ao fim), correntes de pensamento norte-americanas defendiam a tese de que, para tornar sustentável o sonho americano, era (era e continua a ser) necessário que o referido “mito da fronteira” fosse projetado para o exterior de modo a “reproduzir constantemente o sentimento de nova e renovada pertença” e a “continuar a viver a tensão realizadora” de um “mundo de luz” (o espaço originalmente pensado pelos grupos protestantes que chegaram à América do Norte) que se encontra em natural contraste/oposição com o “mundo das trevas” (i.e: tudo o resto; tudo o que não foi homologado ao espírito americano).

O “trumpismo” não é alheio a esta dinâmica (pense-se no sonho expansionista em direção ao Ártico, com a eventual e consequente “territorialização” do próprio Mar Ártico pelas estrelas e riscas). Pelo contrário, num mundo em que o Estado (apesar da globalização) continua a ser o detentor privilegiado da força de coerção, o “trumpismo” manifesta-se como a derradeira tentativa de dotar o Ocidente hegemonizado pelos EUA de uma estrutura pseudo-imperial em que os aparelhos de segurança são contratados a agências privadas diretamente ligadas ao centro (a Washington, que detém a supremacia tecnológica e económica em detrimento das zonas periféricas do “pseudo-império”). Algo em que nem mesmo as chamadas “elites globalistas” foram bem sucedidas.

Por outras palavras, apresenta-se como mais um passo em direção à “democracia gerida”: uma forma política centrada em formas de vigilância digital em que as elites plutocráticas utilizam a tecnologia informática e os algoritmos para reduzir a experiência humana a factores mensuráveis, observáveis e (naturalmente) manipuláveis. Neste caso, a alegada abertura à “liberdade de opinião” nas plataformas de nomes como Musk e Zuckerberg também não deve enganar.

Consequentemente, o alegado “multipolarismo trumpista” resolve-se numa “construção ideal” em que não só os Estados Unidos mantêm inalterada a sua primazia hegemónica de apropriação espacial e força coerciva a nível global, como solidificam ainda mais o seu controlo sobre a Europa: a verdadeira vítima sacrificial no altar da sua reestruturação política, económica e industrial. E o próprio Trumpismo manifesta-se como uma operação biopolítica que visa canalizar a demografia ocidental para os objectivos geopolíticos do centro de poder norte-americano.

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ByDaniele Perra

Licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais, tem mestrado em Estudos do Médio Oriente e possui vários estudos sobre a relação entre geopolítica, filosofia e história das religiões e na área da entidade geopolítica da Eurásia.

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