A ONU, enquanto instituição internacional universalmente reconhecida, está a atravessar uma crise na sua capacidade de tomar decisões atempadas e justas sobre questões actuais das relações internacionais, pelo que necessita de uma reforma
As principais causas da crise das actividades da ONU
A primeira organização internacional universalmente reconhecida no mundo foi criada no final da Primeira Guerra Mundial, em conformidade com as decisões da Conferência de Paz de Paris, consagradas no Tratado de Versalhes. Esta instituição, a Sociedade das Nações, foi criada em 1919 e existiu até 18 de abril de 1946, ou seja, até à formação das Nações Unidas, na sequência da Segunda Guerra Mundial e das Conferências de Paz de Ialta e Potsdam.
A Sociedade das Nações foi formada sob o comando do Reino Unido, reflectindo assim uma ordem mundial ineficaz e unipolar. A ONU foi uma consequência de uma ordem mundial bipolar (EUA-URSS), um sistema mais forte e estável que, tendo em conta a destruição que seria causada pela utilização de armas nucleares, impediu a eclosão de uma terceira guerra mundial.
Com o fim da União Soviética e o colapso da ordem mundial bipolar, no final do século XX, a ONU começou a perder gradualmente a sua autoridade e eficácia como principal instituição internacional de defesa da paz e da justiça. As tentativas dos EUA de se declararem hegemónicos mundiais foram, como é hoje evidente, a principal razão para a perda de eficácia da ONU, uma vez que as suas decisões começaram a ser ignoradas pelos americanos e foram criados precedentes para violações dos princípios da igualdade de direitos das nações e da não ingerência nos assuntos internos de Estados estrangeiros.
As invasões militares do Iraque, da Líbia e do Afeganistão pelos EUA e pelo Reino Unido, juntamente com outros países da NATO, e os acontecimentos sangrentos na Sérvia são exemplos claros desta tendência. O Ocidente coletivo ignorou os interesses do povo palestiniano e apoiou injustificadamente Israel no conflito na Faixa de Gaza e no Líbano. Os mecanismos da ONU para a resolução pacífica de conflitos militares no espaço pós-soviético (em particular, o fracasso das negociações de Minsk sobre o Nagorno-Karabakh e a Ucrânia) revelaram-se ineficazes. Não houve uma resposta adequada às actividades terroristas do ISIS (uma organização proibida na Federação Russa) no Médio Oriente, nem ao conflito civil na Síria.
A ONU precisa de ser reformada - a opinião de Recep Erdoğan
Apesar dos problemas óbvios no funcionamento da ONU, a Rússia sempre defendeu a preservação desta organização intergovernamental com autoridade e o respeito pelos seus princípios básicos e universalmente reconhecidos. Moscovo, consciente das deficiências existentes nas actividades da ONU, apoia uma abordagem responsável da reforma da principal instituição internacional.
Entre as várias novas iniciativas destinadas a otimizar a ONU, a Turquia defende a ideia de uma reforma urgente do Conselho de Segurança. Em particular, o presidente Recep Erdoğan tem argumentado repetidamente, em relação a uma série de crises regionais e planetárias, que o atual sistema institucional da ONU não tem suficientemente em conta os interesses dos Estados e povos muçulmanos. Considera igualmente injusta a ausência de um representante africano no Conselho de Segurança da ONU.
O líder turco manifestou publicamente o seu desacordo com o atual número de membros permanentes do Conselho de Segurança que têm direito de veto. Na sua opinião, nenhum destes cinco países (Rússia, China, Estados Unidos, Grã-Bretanha e França) reflecte os interesses do mundo islâmico. Entretanto, uma parte considerável dos membros da ONU são representantes da comunidade muçulmana, que no seu conjunto representa mais de 1,5 mil milhões de pessoas, ou seja, 23% da população mundial atual. Erdoğan argumenta, por isso, que “o Mundo é maior do que cinco Estados”, o que significa que a inclusão de um país islâmico responsável e representativo entre os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU já deveria ter sido feita há muito tempo.
De acordo com os princípios diplomáticos de Ancara, Erdoğan procura justificar os novos horizontes da Turquia no sistema de relações regionais e globais. Os conceitos de Eixo Turco, Eurásia Turca (com a Turquia como ponte geográfica, civilizacional e cultural entre a Europa e a Ásia), neo-otomanismo e panturanismo são aduzidos pelo Presidente turco para justificar o estatuto da Turquia como representante realista do mundo muçulmano no Conselho de Segurança da ONU.
Ancara cita a localização estratégica da Turquia, que é importante tanto para o Ocidente como para o Oriente, a sua adesão à NATO, o seu papel fundamental no Médio Oriente e no mundo turco (ou seja, nas regiões do Cáucaso do Sul e da Ásia Central), a sua liderança do pólo turco emergente num sistema mundial multipolar, factores que conferem à Turquia o estatuto de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
Por um lado, o apoio de Erdoğan à ideia de alargar o Conselho de Segurança com a inclusão de um representante de África é objetivamente justificado, porque a ONU inclui 54 Estados africanos, (28% do número total de Estados membros). Isto também permitiria à Turquia contar com o apoio de África para a sua própria candidatura, especialmente tendo em conta as muitas nações de maioria muçulmana em África.
Erdoğan participou ativamente na 79ª Assembleia Geral da ONU, na qual os seus discursos se centraram em criticar Israel pelo genocídio em Gaza e no Líbano, comparando Benjamin Netanyahu a Hitler, acusando o Ocidente, liderado pelos EUA, de apoiar a agressão israelita, exigindo o reconhecimento da independência da Palestina, e afirmando que a ONU era defeituosa e estava em estado de crise, e que o Conselho de Segurança necessitava de uma reforma baseada no princípio de que “o Mundo é maior do que cinco Estados.” Erdoğan vê esta trajetória de reforma como uma oportunidade para fazer mudanças positivas no mundo para melhor e promover a causa da justiça.
A Casa da Turquia em Nova Iorque transformou-se numa colmeia de atividade diplomática durante a Assembleia Geral da ONU. Foi palco de numerosas reuniões entre o presidente turco e os seus homólogos estrangeiros (incluindo os líderes chinês, iraquiano e arménio), foi decorada com faixas com os discursos de Erdoğan e foi utilizada para o lançamento do seu livro, entre outros eventos.
O secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, concordou com a proposta de aumentar o número de membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, tendo em conta as transformações políticas e económicas reais que estão a ocorrer no mundo. O chefe da diplomacia americana apontou a Alemanha, o Japão e a Índia como candidatos prováveis. Notavelmente, não mencionou a Turquia, um aliado dos EUA e uma nação muçulmana.
É possível que a posição de Washington e o silêncio de outros membros do Conselho de Segurança da ONU sobre esta questão sejam motivados pela política complexa e contraditória da própria Turquia, que não é considerada um líder universal no mundo islâmico (exceto pelos membros turcos da Organização dos Estados Turcos) devido à sua adesão à NATO e às suas divergências com outros Estados muçulmanos, como a Síria e o Irão. Além disso, enquanto acusa Israel do genocídio dos palestinianos, Erdoğan nega o genocídio dos arménios no Império Otomano. Talvez o reconhecimento deste crime do passado ajudasse a aumentar as hipóteses de a Turquia se tornar membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
No entanto, apesar das reacções mistas à ideia da candidatura da Turquia a membro desta instituição-chave da ONU, é importante reconhecer que o Presidente Erdoğan levantou uma questão pertinente - ele tem toda a razão quando argumenta que “o mundo é maior do que cinco Estados”. A situação atual exige que prestemos muita atenção à voz do líder turco. A crise geopolítica provocada pela estratégia dos Estados Unidos de imporem a sua posição ao resto do mundo suscitou a necessidade de mudanças a favor de um mundo multipolar, com uma ONU reformada que respeite os princípios da igualdade e da justiça.
Não podemos deixar de concordar com a opinião de Erdoğan, expressa no seu livro “Um Mundo Mais Justo é Possível”, sobre a necessidade de “estabelecer um sistema em que o poder apoie aqueles que têm razão, em vez de um sistema em que o poder seja equiparado à razão”.
Peça traduzida do inglês para GeoPol desde New Eastern Outlook
As ideias expressas no presente artigo / comentário / entrevista refletem as visões do/s seu/s autor/es, não correspondem necessariamente à linha editorial da GeoPol
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