
«Enquanto as forças radicais, como os sionistas religiosos, conseguirem exercer tanta influência dentro do país, creio que para Israel os tempos vão ser muito, muito difíceis»
Falemos do teu livro, esta obra-prima que me deu muito prazer ler: “Israel: Geopolítica de una piccola grande potenza”, da Arianna Editrice. Foi escrito em 2017, pelo que muita coisa aconteceu entretanto. Se o escrevesses hoje, o que acrescentarias?
Bem, acrescentaria sem dúvida os Acordos de Abraão, por exemplo, que foram alcançados em 2020 sob o patrocínio da administração Trump e que em suma tinham por objetivo encorajar a normalização das relações entre Israel e um certo número de países sunitas, como por exemplo, os Emirados Árabes Unidos, o Sudão, Marrocos, o Barém, etc. E a cereja no topo do bolo seria, sem dúvida a Arábia Saudita, que a administração Biden, digamos assim, tentou também envolver.
No entanto, por detrás do termo “normalização”, há um projeto que, na minha opinião, é mais estratégico e militar. Ou seja, criar uma espécie de NATO do Médio Oriente centrada contra o Irão e o Eixo da Resistência como um todo, ou seja, o Irão e os seus aliados, estatais e não estatais, portanto a Síria, o Hezbollah, o Iraque xiita e, ultimamente, aparentemente também aos rebeldes xiitas iemenitas, os houthis, os famosos houthis.
Este projeto tinha obviamente a sua própria lógica, porque também se inscrevia, por exemplo, na chamada Rota do Algodão, o projeto apresentado pela administração Biden com o objetivo de criar uma rede de infra-estruturas entre a Europa e a Índia alternativa à Iniciativa Belt and Road, a Rota da Seda chinesa, que por acaso passava por Israel, não por acaso.
O IMEC…
Exatamente. Acredito que pode ajudar a explicar diversas coisas que estão acontecendo hoje. O que é que eu teria acrescentado? Que o processo de radicalização religiosa do Estado israelita se intensificou, atingiu níveis que são verdadeiramente preocupantes. Israel combina no seu seio uma parte muito voltada para a tecnologia – lembrem-se de que o sector hi-tech israelita é muito desenvolvido, é o carro-chefe da economia israelita.
E depende de cidades como Telavive e Haifa, enquanto, por outro lado, uma parte tão importante e numericamente crescente da população em cidades como Jerusalém e nas colónias da Cisjordânia se tornou cada vez mais radical, cada vez mais extremista.
E há várias formas de, digamos, radicalismo também aqui, porque há os ultra-ortodoxos, que são uma componente da sociedade que basicamente não trabalham, estão isentos do serviço militar e que recebe subsídios do Estado apenas para se dedicarem ao estudo da Torá e dos Textos Sagrados.
Portanto, em suma, é uma população, uma coisa bastante estranha, tanto mais que também recebe, isto é, goza de benefícios fiscais que também a tornam particularmente rica, e são de facto o grupo social demograficamente mais ativo. Estamos falando de seis filhos por mulher, pelo que estão destinados a representar uma parte muito importante da sociedade israelita no futuro.
Uma dinâmica semelhante pode ser observada na componente árabe-israelita, ou seja, os herdeiros dos 56 mil palestinianos que em 1948, digamos, “sobreviveram”, entre aspas, à Nakba, à expulsão de Israel, tornaram-se entretanto dois milhões e meio, mais de dois milhões de pessoas que também estão isentas do serviço militar, ou melhor, estão impedidas de servir no exército porque são vistas como uma espécie de potenciais aliados do inimigo.
Trata-se, portanto, de um segmento da população situado nas franjas da sociedade, que coincidem com os níveis mais elevados de pobreza. Segundo algumas projecçnoes, espera-se que estes dois grupos (os ultra-ortodoxos e os árabes israelitas) constituam metade da população israelita em 2050.
O outro grande grupo é o dos sionistas religiosos, que também são muito activos. É interessante notar como o sionismo começou por ser um movimento laico, fundamentalmente laico, socialista até, diria eu. Mas na altura da fundação de Israel estabeleceu uma aliança estratégica com o rabinado que serviu para criar o que era necessário para dar a este novo Estado uma identidade nacional coesa, portanto para criar uma recuperação dos valores típicos do judaísmo e depois isolá-los e tentar fundi-los através de uma espécie de “religião civil”, como alguns lhe chamaram, e que servisse para os manter unida uma população muito heterogénea, porque Israel foi formado por vagas de imigração vindas de todo o mundo: dos Estados Unidos, da Rússia, da Grã-Bretanha, da França, da Polónia, etc. Todos estes países, evidentemente, todas estas populações tinham pouco em comum, exceto a fé religiosa comum, o judaísmo.
Por isso, o judaísmo tinha de se tornar uma importante ligação para esta população. E assim, se a partir desta aliança com o rabinado formou-se uma corrente, que é o sionismo religioso, que identifica na utilização das instituições israelitas, o exército em particular, as alavancas fundamentais para concretizar os desígnios bíblicos.
Assim, Eretz Israel, a “Grande Israel”, ou seja, a extensão territorial de Israel deveria coincidir com a relatada na Bíblia, que se baseia em parte nos Textos Sagrados. Portanto Israel tem várias versões, mas na mais radical, digamos, Israel deveria estender-se não só “From the River to the Sea” (desde o rio até ao mar), mas deveria incluir ainda territórios do Líbano, parte do Sinai do Egipto e até, segundo alguns, da Jordânia.
O atual ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, fez um discurso em Paris, há não muitos meses, e no palco onde discursava foi instalado um mapa do Médio Oriente no qual as fronteiras israelitas incluíam todos estes territórios e uma grande parte da Jordânia. Portanto, em suma, há várias interpretações sobre quais são as fronteiras desta grande Israel.
Esta grande Israel não deveria apenas alargar-se do ponto de vista das fronteiras, mas também, deveria “re-purificar-se” do ponto de vista étnico. Na visão destas figuras devia ser etnicamente homogéneo ou, pelo menos, com uma clara maioria judaica.
E isto abre toda uma série de questões e de problemas, digamos, porque mais ou menos se considerarmos os árabes, os palestinianos que vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, 2,2 + 3,3 são cerca de 5,5 milhões e, em suma, se considerarmos que em Israel, um país com 9 milhões de habitantes há 2 milhões de israelitas árabes, chegamos a 7 milhões contra 7 milhões. Portanto, há um empate nestes territórios onde se deveria construir a Eretz Israel.
O que fazer então com estes palestinianos? A ideia que figuras como Smotrich têm; outro é Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional, é que estas pessoas, de uma forma ou de outra, já não deveriam estar nos territórios que habitam. E isto acho que ajuda a explicar muita coisa.
Sim, mas entretanto, depois de escreveres o livro, passou o 7 de outubro e a guerra rebentou. Achas que isso se deve também a um desacordo entre os EUA e o sionismo, ou mesmo um distanciamento de Israel por parte do Estado profundo, que é uma coisa complexa. Mas que uma parte do Estado profundo se tornou anti-sionista e quer outra estrutura, outra configuração do Médio Oriente?
Bem, Israel nasceu como – lembrem-se que o primeiro país a reconhecer Israel, a votar a favor do reconhecimento de Israel foi a União Soviética. Por um erro de cálculo, os Estados Unidos mostraram-se um pouco mais hesitantes. No entanto, o cálculo da União Soviética acabou por ser totalmente infrutífero e Israel tornou-se uma cabeça de ponte avançada do Ocidente no Médio Oriente, muito próximo dos campos de petróleo que os EUA utilizavam para controlar um pouco a região.
A questão é que, ao longo das décadas, os interesses dos Estados Unidos e de Israel tornaram-se muito divergentes. Ou seja, Israel procura basicamente alargar as suas fronteiras, limpar etnicamente o território dentro dessas fronteiras e ter uma atitude, eu diria hegemónica, em relação ao resto da vizinhança. Israel tem a bomba atómica e pretende alcançar a hegemonia em toda a região. E, em vez disso, a atitude dos EUA foi sempre a de manter um equilíbrio de forças, ou seja, uma atitude emprestada um pouco do velho Império Britânico, isto é, tentar assegurar que em nenhuma região do mundo surgisse uma potência capaz de impor o seu domínio sobre todas as outras e isto, evidentemente, também se aplica a Israel.
Mas com Israel à cabeça…
Sim, mas a questão é que numa fase como a que estamos a viver, em que estamos a embarcar no multipolarismo, em que há o crescimento de uma série de países os Estados Unidos estão a lutar cada vez mais para manter do seu lado um grande número de nações, algumas das quais são muito importantes, como a Arábia Saudita, naturalmente o interesse dos EUA seria então procurar uma acomodação com esses países, procurar um grande acordo. E, acima de tudo, as operações que Israel está a levar a cabo a partir de 7 de outubro são vistas pelo resto do mundo como um genocídio, por grande parte do resto do mundo, como um genocídio que está a ser levado a cabo com o apoio dos EUA, porque é evidente que se os EUA se parassem, cessassem o fornecimento das armas, imediatamente, de um dia para outro, Israel teria que pôr termo às operações militares em Gaza.
Claro. E essa é outra questão: Podemos dizer que esta é a grande oportunidade para saber quem é que domina quem: Israel ou os Estados Unidos. É uma questão que se coloca há anos.
Exacto. Esta é uma questão, recordemos o velho mas ainda muito atual ensaio de John Mearsheimer e Stephen Walt “O Lóbi de Israel e a Politica Externa dos Estado Unidos da América”, que não perde nenhuma relevância que tinha para a atualidade. Porque demonstra, com provas irrefutáveis, a influência que o lóbi israelita dos EUA acumulou.
Que Israel tem tido, ao longo dos anos, a capacidade de compreender os mecanismos de poder do sistema americano e de os transformar em seu próprio proveito, através de uma utilização muito pouco escrupulosa dos media, sobretudo do New York Times, da penetração nos núcleos da alta finança, por exemplo.
O facto de ter conseguido, de uma forma ou de outra, utilizar esta influência do uso do dinheiro e dos meios de comunicação social, colocou Israel numa posição que lhe permite decidir o sucesso ou não de um aspirante à carreira política. Ou seja, não há nenhum aspirante a político americano que possa pensar em ter uma carreira de sucesso se criticar Israel. Isto é um facto.
E isto tem toda uma série de implicações. Por exemplo, transformou Israel de uma questão de política externa numa questão de política interna dos EUA. Porque vemos que, apesar do facto de os EUA estarem a pagar um preço político muito elevado pelo apoio que continuam a dar a Israel, esse apoio continua inabalável, porquê? Porque o peso do lóbi de Israel continua a ser esmagador e creio que há algo ainda mais profundo. Há uma espécie de chantagem, porque há um livro de uma autora americana cujo nome me escapa agora [Whitney Webb], que se intitula “Nation under Blackmail” (Uma nação sob chantagem), em que ela analisa a figura de Jeffrey Epstein, financeiro que morreu em condições de prisão, como se sabe, dado como “suicida”, mas ninguém acredita nisso. Epstein tinha uma série de mansões que eram frequentadas por figuras do establishment, da política, do mundo do espetáculo, da finança norte-americana e, ao que parece, havia nelas orgias com raparigas menores. E aqueles que acompanham estes assuntos mais ou menos adivinharam que Epstein estava provavelmente a filmar estas relações, o que se passava dentro destas mansões, e havia provas que quem frequentava assiduamente, era o antigo primeiro-ministro israelita e Ehud Barak, por exemplo. Dezenas e dezenas de vezes. Barak não é apenas um antigo primeiro-ministro, é também o soldado mais condecorado da história de Israel, general de topo, em suma.
Portanto, há também a possibilidade de que, através da figura de Epstein, Israel (a Mossad) tenha adquirido uma massa de provas incriminatórias para uma série de figuras políticas, económicas e da cultura americanas, e que o tenham colocado em posição de manter os EUA sob chantagem, sob controlo. Esta é sem dúvida uma chave de compreensão. E na ealidade, Israel manipula a política externa dos EUA.
Então, e se Trump voltar, até onde é que achas que isto pode chegar?
Isto é um problema, porque uma vez que, enquanto se matar dezenas de milhares de palestinianos – é esse o cálculo dos EUA – talvez o preço político a pagar possa ser aceitável, mas no momento em que Israel eleva o seu jogo, porque se encontra num impasse no campo de batalha de Gaza, tenta então alargar o conflito e depois com uma série de operações de provocação contra o Irão. Vimos que o Líbano e a Síria foram bombardeados sete vezes desde 7 de outubro e que vários membros do Pasdaran foram mortos e, no último caso, foi mesmo visado um escritório consular, uma embaixada, um escritório diplomático iraniano em Damasco. Morreram sete oficiais superiores do Pasdaran, incluindo o chefe da Força Quds para a Síria e o Líbano, o general Mohammad Reza Zahedi. Este ataque que mostra que Israel ultrapassou verdadeiramente a linha vermelha, pois em todo o mundo as representações diplomáticas não são atacadas.
No entanto, Israel avançou nesta direção na esperança de colocar o Irão na posição de ter de responder, de ter de reagir. Porquê? Por questões internas, digamos: para saciar a sede de vingança interna e, em segundo lugar, mas não tão segundo, para restaurar a dissuasão perdida. Vimos, portanto, que o Irão lançou esta represália. Uma represália que foi pré-anunciada com vários dias de antecedência, através da Turquia, e assim o Irão deu aos EUA tempo suficiente para colocar as suas forças em alerta no Médio Oriente e tentar organizar a estrutura de defesa de Israel. O ataque iraniano recorreu a centenas de drones e mísseis baratos, a maioria dos quais foi interceptada. De acordo com o governo israelita, 99%; o jornal israelita Maariv, por outro lado, falou de 84%, o que não é exatamente a mesma coisa.
Mas o que muda, acima de tudo, é o facto de que mais de 60% drones e mísseis, teriam sido interceptados, não pelas defesas israelitas, mas pelos EUA. Isto prova que o sistema Iron Dome e o sistema David Sling são insuficientes para fazer face a um ataque maciço deste tipo, capaz de saturar as defesas aéreas, pelo que mostrou ao mundo que Israel precisava da ajuda dos EUA, da Grã-Bretanha, da França e da Jordânia para poder limitar consideravelmente os danos. E o mais importante é que a retaliação iraniana não causou quaisquer baixas; atingiu instalações militares.
Isto, naturalmente, colocou os EUA perante um dilema; ou seja, Israel irá certamente reagir por sua vez, mas o que poderia fazer atacando, o que poderia desencadear, atacando o território iraniano? Os EUA disseram que se Israel reagir, “nós ficaremos de fora”, foi o que disseram.
E vimos que a reação israelita foi pequena, quase insignificante, diria eu. Portanto, o Irão e, sobretudo, a resposta para neutralizar o ataque iraniano, Israel e seus aliados utilizaram mísseis de caça aéreos e gastaram quase 1,5 mil milhões de dólares, enquanto o Irão gastou algumas dezenas de milhões de dólares para montar esse tipo de ataque. Portanto, é capaz de o reproduzir e nem sequer utilizou os mísseis mais modernos de que dispõe. Há quem diga que o Irão tem os seus próprios mísseis hipersónicos.
Em suma, é um jogo em aberto e, certamente, o Irão minou ainda mais a dissuasão israelita, que já estava em crise devido aos acontecimentos de 7 de outubro, devido ao ataque levado a cabo pelo Hamas, e agora, Israel está ciente de que o seu próprio território pode ser alvo e que não há forma de travar um ataque tão maciço composto por centenas e centenas de mísseis.
E quero sublinhar uma coisa: neste ataque iraniano só participou o Irão. Não foram usados mísseis do Hezbollah, nem mísseis do Iémen. Porém, se todos eles explodissem simultaneamente, ao mesmo tempo, o que seria de Israel… Israel tem a bomba atómica, mas também uma profundidade estratégica praticamente ridícula, porque é um país muito pequeno que concentra a sua população em zonas muito pequenas: Telavive, Haifa, basicamente poucas cidades, quase todas concentradas na costa, pelo que em suma, o risco para Israel é muito grande, penso eu. Eu penso que o governo israelita será forçado a refletir sobre o risco de uma escalada.
Mas tudo isto se passou num quadro geral em que o Egipto, a Arábia Saudita, o Irão, os Emirados, a Etiópia, aderiram aos BRICS e, meses depois, isto acontece mesmo no meio destes países, mesmo na confluência das três placas tectónicas: a europeia, a árabe e a asiática. Não achas que o que aconteceu a 7 de outubro é demasiada coincidência?
Há várias interpretações, recordemos que, por exemplo, duas semanas antes do Hamas ter lançado a operação Dilúvio de al-Aqsa (“al-Aqsa Flood”), Netanyahu foi à Assembleia Geral das Nações Unidas e levou um mapa do Médio Oriente de cor verde em que o Estado de Israel estava de cor roxa e nas fronteiras desse mapa Israel incluía a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, pelo que o programa de anexação destes territórios pelo governo israelita já estava no ar. E quero dizer mais: em março do ano passado, 2023, ocorreu um acontecimento muito importante: o Irão e a Arábia Saudita reencetaram as relações diplomáticas graças à mediação chinesa. Este é um acontecimento muito importante, porque se segue ao esgotamento no final da guerra síria, que viu o governo de Bashar al-Assad, o Hezbollah, o Irão e a Rússia derrotarem os bandos terroristas que operavam na Síria, apoiados pela Arábia Saudita, Catar, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Turquia. Em suma, a vitória de Assad levou a uma série de convulsões, por exemplo, levou à criação da OPEP+, a organização dos produtores de petróleo mais a Rússia.
E na sequência desta vitória, depois desta vitória do Eixo da Resistência, a Rússia forçou a OPEP a isentar o Irão do cumprimento das quotas de produção de petróleo, o que significa, como sabemos, que todos os países que fazem parte da OPEP têm de cumprir as quotas de produção. O Irão, que tinha sido severamente afetado pelas sanções dos EUA, especialmente depois de Trump ter abandonado o acordo alcançado por Obama sobre a questão nuclear iraniana, forçou a OPEP a permitir que o Irão não cumprisse as quotas e, portanto, colocasse mais petróleo no mercado para, basicamente, obter mais lucros.
E depois o que é que aconteceu? A Síria de Assad foi reintegrada na Liga Árabe. O que aconteceu foi que o Irão e a Arábia Saudita reataram as relações diplomáticas e o conflito no Iémen, que viu – os rebeldes xiitas houthis – oporem-se a uma coligação internacional liderada pela Arábia Saudita, Egipto e Emirados Árabes Unidos, esta guerra chegou ao fim.
Depois, vemos, os acontecimentos de 7 de outubro, o ataque do Hamas e a ação israelita, os houthis começam os seus atos de sabotagem contra os navios de interesses israelitas na zona do Mar Vermelho, no porto de Eilat, etc.
Pouco tempo antes, havia esta coligação internacional a combater os houthis, mas de repente, depois de os houthis começarem a atacar os navios israelitas, nem a Arábia Saudita, nem os Emirados Árabes Unidos, nem o Egipto fazem nada.
Então, os EUA e a Grã-Bretanha intervêm, organizando a operação “Prosperity Guardian”, patrulhando as águas do Mar Vermelho e até com bombardeamentos em território iemenita.
Mais uma vez, nesta operação não participam nem o Egipto, nem a Arábia Saudita, nem os Emirados Árabes Unidos. Apenas o Bahrein participa, mas a sua participação é simbólica. O Egipto não participa, pois tem muito a perder, uma vez que os ataques no Mar Vermelho reduziram muito o tráfego de navios porta-contentores através do Canal do Suez, que é uma fonte de rendimento muito importante para o Egipto.
Então, porque é que estes países ficaram de fora? Não se juntaram à campanha dos EUA? Vou contar-vos outra, que ainda antecede tudo o que já disse: em dezembro de 2022, Xi Jinping faz uma viagem à Arábia Saudita, aos Emirados Árabes Unidos, a Omã, ao Kuwait, etc., e o que é que ele disse? A toda a gente, no Conselho de Cooperação do Golfo…
Estou disposto a investir, a importar quotas crescentes do vosso petróleo e gás natural e a investir na vossa economia de modo a colocar-vos em posição de cuidar de toda a cadeia petrolífera, ou seja, exploração, extração, refinação e exportação de produtos petrolíferos de elevado valor acrescentado. Em contrapartida, quero que algumas das minhas importações de petróleo e gás fossem pagas em Yuan-Renminbi. E que se use para estas transacções a Bolsa de Petróleo de Xangai.
Claro, o paradigma energético muda.
Isso. Este é um facto importante. E acontece que, alguns dias depois, o ministro do petróleo saudita anuncia abertamente que Riade está a considerar comercializar o seu petróleo em moedas alternativas ao dólar. Estamos perante – é disso que se trata os BRICS. Ou seja, os BRICS simbolizam o facto de que mundo se ter tornou multipolar, pelo que os EUA já não estão em posição de dizer ao resto do mundo “ou connosco ou contra nós”, porque o resto do mundo simplesmente rejeita esse tipo de lógica.
A hegemonia do dólar agora muda completamente…
Exatamente, está reduzida. Mas também há outro fator, lembro-me de outro exemplo: quando os Emirados Árabes Unidos quiseram comprar os F-35 aos EUA, os EUA disseram que só vos venderíamos se vocês recusasam a Huawei construir a vossa rede 5G. E o que é que os Emirados disseram? Fiquem com os vossos F-35, porque nós fazemos negócios com quem quisermos e, entretanto, cancelamos a encomenda de 50 F-35 e compramos 80 caças Rafale à França. Trata-se de uma mudança muito importante: os países já não têm mais medo!
Do lobby militar e a tudo isso… Mas tu também falas muito sobre o papel da Turquia. É um ator demasiado importante para a região. Achas que a Turquia pode intervir para agitar as coisas, agora que parece que Erdogan está a perder terreno internamente, com a Irmandade Muçulmana e o FETÖ? Todo este cenário é muito perigoso…
Então, Erdogan é uma personagem peculiar. É, sem dúvida, um político muito inteligente, muito inescrupuloso, que pensa que pode jogar em várias mesas. Por exemplo, quando a agitação começou na Síria, ele virou as costas a Assad e esteve na linha da frente da tentativa de desestabilizar a Síria, e recordemos que no contrabando de petróleo sírio, a Turquia esteve fortemente envolvida. No treino dos chamados “rebeldes sírios”, a Turquia também esteve na primeira fila.
A Turquia tem tido esse tipo de política, mas Erdogan é muito bom numa coisa: é muito bom a mudar subitamente de direção, quando vê que os resultados não estão à altura das expectativas, por isso, quando viu que no campo de batalha sírio não havia mais hipóteses, tentou arranjar um acordo com Assad, para encurralar a entidade curda que estava a ser criada, essa entidade curdo-síria que poderia depois ser colada ao Curdistão turco e criar uma série de problemas bastante espinhosos para Erdogan. E depois o que é que acontece? O que acontece é que rebenta o conflito russo-ucraniano, o Ocidente impõe sanções e o que é que Erdogan faz? “Não me meto nisso!”. Não só não me meto, como continuo a comprar sistemas anti-mísseis russos S-400, importo quantidades crescentes de petróleo e gás natural russo, tanto, que uma parte é vendida à Europa.
Portanto, Erdogan é o máximo da duplicidade… e lembremo-nos de que a Turquia é membro da NATO desde 1952, ou seja, Erdogan está sempre a jogar estas jogadas, tentando fazer o que lhe parece mais vantajoso no momento. Quando se deram os acontecimentos de 7 de outubro, Erdogan subiu o tom muito alto, acusou Netanyahu de ser um genocida, etc., mas o povo turco apercebeu-se de que, na realidade, eram apenas palavras, porque não havia actos concretos, nem sequer tinha sido imposta uma sanção a Israel pela Turquia.
Porque existe uma integração geoeconómica na região com a Rússia, com a Turquia, com a Arábia Saudita…
É exatamente isso. Mas o que é que aconteceu? Que esta atitude, digamos, branda em relação a Israel, na minha opinião, pode explicar em grande medida porque é que as eleições locais na Turquia correram tão mal para Erdogan, que coincidentemente, logo a seguir, começou a atacar novamente Netanyahu e coincidentemente a impor as primeiras sanções económicas contra Israel, porque entendeu o recado.
Em toda a região há dirigentes políticos que não querem saber dos palestinianos. As lideranças da Arábia Saudita, do Egipto e dos Emirados Árabes Unidos não querem saber dos palestinianos. Mas as respectivas populações entendem a questão palestiniana como uma questão de identidade nacional, à qual não se pode renunciar. Assim, estes países são forçados pelas suas próprias populações a ter atitudes que não estão alinhadas com as de Israel. Era evidente, por exemplo, que Israel, na fase inicial da guerra, pretendia obrigar o Egipto a acolher algumas centenas de milhares de palestinianos, a esvaziar a Faixa de Gaza. Era muito claro, mas o Egipto não cedeu, porquê? Porque se tivesse cedido, al-Sisi teria provavelmente sido derrubado pelo seu próprio povo. E assim, em suma, Israel entrou num beco sem saída.
Talvez. Há pouco falaste da Ucrânia. Achas que a demissão de Nuland tem alguma coisa a ver com o Médio Oriente, para além do óbvio fracasso na Ucrânia?
Pode ser, porque Victoria Nuland foi a artífice, a arquiteta do golpe Euromaidan de 2014, foi ela que dirigiu todo… – houve um artigo do New York Times há algumas semanas sobre como depois de 2014 a CIA tinha instalado 12 bases de espionagem militar na Ucrânia Oriental, perto da Federação Russa, tinha ativado um programa de formação de agentes de intel ucranianos. O atual chefe do SBU, os serviços secretos ucranianos, Kyrylo Budánov, foi aparentemente formado no âmbito deste programa.
Digamos que o conflito nos cálculos ocidentais deveria ter terminado de uma forma diferente, e recordemos que o principal interesse estratégico dos Estados Unidos não é a Europa, mas a Ásia-Pacífico, e que, no fundo, continua a ser a zona de Taiwan e da China, pelo que, quando se tratou de escolher o número dois de Antony Blinken no Departamento de Estado, a escolha recaiu não sobre Victoria Nuland, que é especialista em Rússia e Ucrânia, mas sobre Kurt Campbell, que é um perito em China e Pacífico. Isto pode significar que a administração Biden está, de alguma forma, a procurar uma saída para este pântano ucraniano, a fim de concentrar a atenção no cenário principal, que é Taiwan. Esta é, sem dúvida, uma pista. Provavelmente a única que temos, dada a pouca informação de que dispomos.
Outra poderia ser o facto de Victoria Nuland ter sido vítima de um ajuste de contas interno no aparelho americano, porque é verdade que os neoconservadores (neocons) continuam a ser muito fortes na CIA, no Departamento de Estado, etc. Mas há uma fação crescente dentro do próprio aparelho, que é hostil… que seria a favor de uma reconfiguração da presença militar e de espionagem dos Estados Unidos no estrangeiro. Alguns, por exemplo, visavam claramente uma retirada do Médio Oriente. E os Acordos de Abraão e a normalização com a Arábia Saudita iam nessa direção, do meu ponto de vista. Digamos, portanto, que há uma luta muito amarga no seio do “Deep State”, do Estado profundo norte-americano, e pode ser que Vitória Nuland tenha sido a vítima sacrificial desta luta interna. As nossas hipóteses são apenas hipóteses, não temos, certos elementos para compreender o que aconteceu.
Num cenário pós-hegemónico, a Rússia será muito importante. Também falas muito do lóbi israelita nos Estados Unidos e do lobby russo em Israel, mas qual é o peso real do lóbi israelita na Rússia?
Digamos que há muito tempo que a Rússia e Israel mantêm uma relação muito próxima. Basta dizer que o russo é a terceira língua mais falada em Israel, depois do hebraico e do árabe. Desde a década de 1980, centenas de milhares de judeus russos emigraram para Israel. Trata-se, portanto, de uma componente, de laços muito fortes. Muitos dos chamados oligarcas russos, Archadi Gaydamak, Michael Friedman, têm dupla nacionalidade, russa e israelita. Este é um facto importante, pelo que durante vários anos houve um certo entendimento entre os dois países, mas há já algum tempo que se verifica um inegável distanciamento, especialmente na sequência do conflito russo-ucraniano, em que, inicialmente, parecia que Israel também tinha tomado algumas iniciativas diplomáticas interessantes.
Recorde-se que o então primeiro-ministro Naftali Bennet tinha sido um dos principais mediadores e tinha também declarado que, se a paz não fosse alcançada, era porque o Ocidente queria forçar a Ucrânia a continuar a guerra para derrotar a Rússia. Foi um pouco isso que Bennett disse. Depois, porém, houve uma reorientação de Israel cada vez mais contra a Rússia, que não só abriu a frente ucraniana como também a frente na Síria, e assim os contínuos ataques na Síria contra o governo de Assad, etc., contribuíram sem dúvida para o arrefecimento das relações bilaterais. Depois, claro, o massacre que Israel está a levar a cabo desde 7 de outubro e a tentativa da Rússia de se colocar à frente do chamado Sul Global, levaram os dirigentes de Moscovo a criticar fortemente Israel. Nos últimos dias vimos o representante russo pedir mesmo sanções contra Israel pela sua conduta. A Rússia sempre criticou duramente Israel e a embaixadora israelita em Moscovo protestou contra a atitude russa.
A Rússia, por outro lado, aproximou-se muito do Irão, porque o Irão, por exemplo, forneceu drones que a Rússia utiliza e até reproduz no seu próprio território e até os modifica, de modo a utilizá-los no conflito russo-ucraniano, e, por conseguinte, há também um reposicionamento por parte da Rússia, o que, deste ponto de vista, é desfavorável a Israel.
Ou seja, Israel conseguiu mesmo minar esta relação que, neste momento, que até os próprios países ocidentais lutam para continuar a apoiar Israel politicamente, diplomaticamente, mas a opinião pública ocidental não vê com bons olhos Israel. Israel já perdeu do ponto de vista das relações públicas, especialmente do ponto de vista do impacto de ter arruinado as relações com a Rússia, a principal desvantagem que Israel infligiu a si própria com esta operação militar na Faixa de Gaza.
Estás a planear escrever algo semelhante sobre o Irão? Isso seria algo de especial, não seria?
Tenho de pensar nisso. Sim, gostaria de o fazer,mas estou ocupado com vários projectos neste momento, mas pensei em algo sobre o Irão ou a Turquia.
Podes-nos falar sobre o que tens planeado escrever?
Sim, apresentei agora, um ensaio a algumas editoras, no qual tento analisar por que razão, do meu ponto de vista, Israel corre realmente o risco de chegar a um mau fim, porque a campanha militar que empreendeu na Faixa de Gaza corre o risco de se fundir com os problemas internos. Digamos que com a tribalização da sociedade israelita, o facto desta campanha militar a ter antagonizado aos olhos de uma grande parte do mundo e de Israel aparecer agora aos olhos de muitos como um Estado genocida e corre o risco de conduzir Israel a uma ladeira muito perigosa, que pode conduzir a uma escalada que leve Israel a tentar resolver os problemas através de ações militares, como sempre faz, ou a reconsiderar radicalmente o seu modus vivendi na região, o que, aliás, também foi invocado por um antigo diretor da Mossad, Efraim Halevy, que procura uma acomodação. Mas enquanto as forças radicais, como os sionistas religiosos, conseguirem exercer tanta influência dentro do país, creio que para Israel os tempos vão ser muito, muito difíceis.
E que futuro para Netanyahu?
Netanyahu, sabemos que está a ser perseguido em vários processos criminais, que correm o risco não só de acabar com a sua carreira política, mas também de lhe abrir as portas da prisão, o que ajuda, digamos, a explicar algumas das suas ações, ou seja, o facto de Netanyahu precisar de prolongar a guerra o mais possível, de prolongar o esforço militar o mais possível, de manter basicamente congelados os processos que estão a decorrer contra ele.
Penso que Netanyahu, depois de lá ter estado – Netanyahu, recordemos, é o primeiro-ministro sob o qual ocorreram os acontecimentos de 7 de outubro – vimos que agora o chefe dos serviços secretos militares israelitas, o Aman, demitiu-se. Terá de haver investigações e purgas, sem dúvida.
Mas a responsabilidade política recai claramente sobre o primeiro-ministro e, por isso, penso que Netanyahu – e esse é o problema, uma vez que Netanyahu sabe tudo isto –, qual é o seu cálculo? O que é que lhe resta? Procurar uma vitória tão grande, um triunfo tão retumbante, que todos os meus pecados passados sejam perdoados.
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