Numa espécie de dialética hegeliana, o livro de Wang ajudou certamente a acrescentar ao percurso chinês iniciado em 1949 uma correção de tendência tradicionalista, conservadora, mas sobretudo pragmática, absorvendo para si também o melhor da experiência norte-americana
Em 1988, um jovem professor de relações internacionais da universidade de Fudan, na China, viajou durante meio ano por toda a geografia dos EUA. Queria entender aquele grande país em profundidade, num momento em que a União Soviética estava no seu final, o Japão desafiava os EUA pela condição de primeira economia do mundo e estes adensavam o seu processo neoliberal iniciado nos anos 70.
Wang Huning, o «Tocqueville chinês», como também ficou conhecido desde então, avisa no prefácio do seu “America against America” (publicado em 1991), que “obviamente, estudei e vi os Estados Unidos como uma sociedade, mais como observador do que como investigador”.
Trata-se de um testemunho honesto de quem conseguiu captar de forma perspicaz muitas das características da realidade social de um país diverso, num particular momento histórico. Provavelmente inspirado no filme Kramer contra Kramer (1979) – ao qual faz uma pequena referência –, o drama de uma criança que vê os seus pais a se divorciarem e irem cada um pelo seu lado, pode ser uma crítica ao individualismo extremo daquela sociedade.
Trata-se de um documento sociológico de grande interesse, atemporal, apesar de ter sido escrito há quase quatro décadas. Elogia as inúmeras virtudes de um país imerso em contradições. Wang quer absorver para a China os bons exemplos: o empreendedorismo, o espírito prático, o respeito pela tradição, a compulsão pela modernidade, uma simbiose nem sempre de fácil compreensão.
Logo no início do livro, o autor reconhece que o marxismo, embora estivesse correto na análise que fez do capitalismo, equivocou-se no seu foco. “Durante muito tempo, impulsionado pelo reforço da ideologia, houve uma rejeição total do capitalismo, que foi influenciada pelo dogmatismo, que impediu as pessoas de julgarem a sociedade capitalista objetiva e cientificamente”. A esta auto-crítica, acrescenta que sob “ideologia de ‘esquerda’, que tomou a luta de classes como contorno, perturbou a nossa perspetiva do mundo inteiro e impediu as pessoas de aprenderem com a experiência avançada de outros países”.
Mas também observa na sociedade americana dos 80’s as sementes de um desastre social anunciado: “Numa economia de mercadorias, o poder do dinheiro é irresistível. Sem uma força que o guie, as pessoas orientar-se-ão para o lucro. Isto acabará por conduzir a graves problemas sociais.” Alguma dúvida em relação à precisão do seu prognóstico?
Na retrospetiva que faz da evolução daquela que era então a maior economia do mundo, o autor fala dos paradoxos em que a sociedade americana incorreu desde a chegada do Mayflower às costas da Nova Inglaterra. Desde a discussão sobre a primazia da liberdade sobre a igualdade, até às então crescentes crises de valores, pobreza, extremas desigualdades, criminalidade e droga, Wang faz uma crítica sincera sobre a realidade dúbia dos EUA do final dos 80’s.
O crescente poder dos lóbis com ramificações ao mundo académico, o funcionalismo público ligado ao sistema bipartidário que tudo controla, as grandes corporações, a falta de autoridade, a desagregação de instituições nucleares como a família. Nada disto são exemplos a seguir, mas que merecem reflexão.
Não menciona uma série de outros factores que conduziram à atual situação limite, como o financeirismo, a praga das armas, interna e externa, as guerras sem fim ou a corrupção, mas é um texto abrangente e bastante descritivo. Simples, mas envolvente.
No que respeita às relações internacionais, Wang avisava então que “durante muito tempo, os americanos não quiseram reconhecer o êxito do Japão […] Penso que voltarão a deparar-se com uma situação semelhante” e que será “nessa altura que os americanos refletirão verdadeiramente sobre a sua política, economia e cultura”, avisando que “se quisermos ultrapassar os americanos, temos de fazer uma coisa: ultrapassá-los em ciência e tecnologia.”
Quase quatro décadas depois, a China é hoje líder em 37 das 44 tecnologias críticas que abrangem os sectores da defesa, o espaço, a robótica, a energia, a biotecnologia, a inteligência artificial, os materiais avançados e as principais áreas da tecnologia quântica, para além de ser de longe o país que mais licenciados produz anualmente em STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemáticas).
O autor parece criticar o percurso decadente dos EUA feito pelo lado esquerdo, com o capitalismo e o liberalismo como bases. Um percurso inversamente paralelo àquele que a China já tinha iniciado no princípio da década de 70. Menciona de forma crítica o “crescimento do igualitarismo, do niilismo e do relativismo na cultura americana contemporânea” e vaticina a decadência do país devido a estes germes.
Wang é hoje uma das principais figuras do sistema chinês. Homem muito próximo e considerado um dos máximos ideólogos do presidente Xi Jinping, e antes de Jiang Zemin e Hu Jintao. É frequentemente descrito na imprensa ocidental como a “eminência parda” do PCC, o “homem por detrás da cortina”.
Dado o presente momento geopolítico em que a ascensão chinesa coincide com o redimensionamento claro do poder global dos EUA, “America against America” cobrou renovado interesse do público ocidental, particularmente norte-americano. Por alturas da pandemia podia-se encontrar no eBay números da edição original à venda até $3,500. Felizmente novas edições foram publicadas, para que tenhamos acesso a este belo depoimento, que explica em parte a complexidade das relações entre as duas maiores economias mundiais hoje.
Nas vésperas das eleições nos EUA, num momento tão crítico das relações internacionais, este é um livro extremamente oportuno para entender muito do que motiva os EUA a estar na situação em que está.
Numa espécie de dialética hegeliana, o livro de Wang ajudou certamente a acrescentar ao percurso chinês iniciado em 1949 uma correção de tendência tradicionalista, conservadora, mas sobretudo pragmática, absorvendo para si também o melhor da experiência norte-americana. É desta forma que a República Popular tem vindo a percorrer o seu caminho inequivocamente socialista, mas pelo lado direito. Os resultados só não os vê quem não quer.
Peça traduzida do inglês para GeoPol desde New Eastern Outlook
As ideias expressas no presente artigo / comentário / entrevista refletem as visões do/s seu/s autor/es, não correspondem necessariamente à linha editorial da GeoPol
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