A China prefere a estabilidade ao caos. Por isso, construiu canais diplomáticos profundos em todos os Estados do Médio Oriente, que pode utilizar para manter uma ordem económica estável
Nos últimos anos, o Médio Oriente tem sido o principal centro de comércio da China, sobretudo devido ao facto de mais de 70% do petróleo que Pequim importa ser proveniente desta região. Entre 2017 e 2022, o comércio bilateral da China com esta região saltou de 262 mil milhões de dólares para 507 mil milhões de dólares. Só em 2022, a região viu o seu comércio com a China aumentar em mais de 27 por cento. Este foi o maior aumento do comércio da China em comparação com outras regiões, como a ASEAN. A China já é o maior parceiro comercial de muitos dos principais países árabes, incluindo a Arábia Saudita e os EAU. Qualquer tensão geopolítica na região deverá, por conseguinte, envolver Pequim como um ator importante. No entanto, não vemos a China a desempenhar um papel geopoliticamente dominante na região. Em comparação com os EUA, Pequim continua a manter uma presença discreta, evitando envolver-se em conflitos regionais. Porque é que isto acontece e como é que Pequim consegue evitar conflitos?
As acusações esfarrapadas
Em primeiro lugar, vêm as acusações ocidentais que consideram o sucesso da China em evitar conflitos como parte da estratégia de Pequim para criar o caos de forma silenciosa mas intencional. Num artigo publicado na Foreign Affairs, o antigo conselheiro adjunto de segurança nacional dos EUA, Matt Pottinger, e o deputado da Câmara dos Representantes, Mike Gallagher, acusaram a China da sua “política de fomentar o caos global”. Segundo este argumento, Pequim consegue evitar envolvimentos profundos em conflitos pelo simples facto de ajudar a criar esses conflitos para encurralar Washington e os seus aliados. Com estes últimos assim encurralados, vêem-se incapazes de competir diretamente com a China em termos económicos. A China fica com todo o espaço livre para o conquistar.
Mas este argumento faz pouco ou nenhum sentido. Se a China “fomenta” conflitos, porque é que não consegue ver que esses mesmos conflitos, se se alastrassem, perturbariam enormemente as rotas comerciais da própria China? Um importante centro do comércio chinês é, por exemplo, o porto do Dubai. Uma guerra na região poderia interromper estas operações. Do mesmo modo, o Irão é um importante fornecedor de petróleo à China. Uma guerra entre o Irão e Israel teria um impacto semelhante na economia chinesa, perturbando as rotas da seda e pondo em risco o objetivo da China de alcançar o “rejuvenescimento nacional” até 2049, ou seja, um renascimento que devolveria à China o seu lugar legítimo como grande potência. Um conflito no Mar Vermelho seria também uma enorme perturbação. Por conseguinte, as guerras não fazem sentido económico para Pequim. Há uma lógica para este facto.
A lição aprendida
A China, na atualidade, parece ter aprendido uma lição crucial com os EUA. Uma das principais razões para o declínio da influência global dos EUA nas últimas duas décadas são as suas muitas guerras. As muitas guerras que travou – Afeganistão, Iraque, Síria, Líbia, Iémen, Ucrânia, Palestina/Israel, etc. – não só tiveram um pesado custo em termos de biliões de dólares para a economia dos EUA, como também a incapacidade de Washington para as ganhar de forma justa afectou fortemente a sua credibilidade global como superpotência. Por conseguinte, para a China, iniciar diretamente ou fomentar indiretamente guerras é uma estratégia contraproducente que causa mais danos do que benefícios. É por esta razão que a China, por exemplo, mediou a paz entre o Irão e a Arábia Saudita. Esta política é diametralmente oposta à de Washington, que se baseia mais na venda do medo do Irão - e da sua bomba atómica - para manter as tensões, ou seja, o caos.
Pequim, pelo contrário, está a fazer outra coisa. Está a investir – e a vender – o futuro económico. Em 2023, por exemplo, o produtor chinês de veículos eléctricos Human Horizons assinou um acordo de 5,6 milhões de dólares com a Arábia Saudita. No início deste ano, os Emirados Árabes Unidos (EAU) e a China assinaram um novo memorando de entendimento no âmbito da Iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” de Pequim para aprofundar o seu compromisso económico, em especial no que diz respeito às tecnologias verdes. As autoridades portuárias chinesas e do Dubai estão agora interligadas.
A visão estratégica de Pequim
Mas a política de reconciliação e o desenvolvimento futurista no Médio Oriente não são incidentes aleatórios. Este processo assenta numa visão política que os dirigentes chineses revelaram já em 2014. Como parte do que é conhecido como segurança nacional abrangente, a definição de segurança nacional de Pequim não é, ao contrário dos EUA/Ocidente, meramente a ausência de ameaças e/ou a sua eliminação. (Segurança Nacional = “Guerra ao Terror” nos EUA.) A definição de segurança nacional de Pequim, com 16 pontos, envolve, por exemplo, a “segurança dos recursos”. Tendo isto em mente, faz sentido que a China promova a reconciliação entre a Arábia Saudita e o Irão, os dois principais fornecedores de petróleo da China. Uma guerra entre eles poderia privar a China de uma grande parte do seu petróleo. Uma escassez de petróleo perturbaria gravemente a sua economia e comprometeria a “segurança económica”, o que poderia ter sérias implicações políticas a nível interno. Por conseguinte, para a China, a segurança económica e dos recursos está diretamente ligada a outro aspeto fundamental da segurança nacional, a que chama “segurança política”, ou seja, a manutenção da estabilidade do regime e da supremacia do partido.
Assim, apesar dos desafios que enfrenta no Médio Oriente, a China evita recorrer à força, apesar de ter capacidade para o fazer. Por exemplo, os ataques dos houthis no Mar Vermelho poderiam ter afetado seriamente o comércio chinês. Pequim envia anualmente quase 280 milhões de dólares em mercadorias através do Mar Vermelho. Os ataques dos houthis ameaçavam uma guerra regional que poderia ter interrompido esta linha de navegação. A China, tal como os EUA, poderia ter recorrido à força. No entanto, preferiu as negociações através do Irão para convencer os Houthis a não atacarem os seus navios. Ora, Pequim pôde utilizar este canal devido à influência que tem sobre o Irão. Washington não tem esse canal e, por isso, pouco mais pode fazer do que contra-atacar.
Culpar a China pela ausência de canais diplomáticos fortes é, portanto, não só irrealista como também insensato da parte de Washington. A China prefere a estabilidade ao caos. Por isso, construiu canais diplomáticos profundos em todos os Estados do Médio Oriente, que pode utilizar para manter uma ordem económica estável. É Washington que prefere o caos, para que esta ordem económica não gere os resultados desejados por Pequim. Não há como negar que a China se vê como uma potência global em ascensão, mas o caminho que escolheu não envolve guerras e conflitos; pelo contrário, envolve laços económicos profundos que dão a Pequim uma influência crítica sobre a forma como as coisas acontecem dentro e fora da China.
Peça traduzida do inglês para GeoPol desde New Eastern Outlook
As ideias expressas no presente artigo / comentário / entrevista refletem as visões do/s seu/s autor/es, não correspondem necessariamente à linha editorial da GeoPol
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Imagem de capa por Ricardo Nuno
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