A recente cimeira dos BRICS em Kazan, na Rússia, marcou um ponto de viragem na geopolítica global, sublinhando a influência crescente do bloco e desafiando a ordem mundial dominada pelo Ocidente


A cimeira dos BRICS, recentemente concluída na cidade russa de Kazan, não foi apenas um espetáculo de pompa e circunstância. Para além do facto de a cimeira ter contado com a presença de cerca de três dúzias de líderes nacionais de todo o mundo – o que demonstra o completo fracasso da política ocidental de forçar a Rússia ao chamado “isolamento” – a cimeira também deixou claro que a) não há volta a dar ao que os BRICS representam e b) a sua perspetiva tem aceitação global. A cimeira contou com a presença do secretário-geral das Nações Unidas. É cada vez mais evidente que o Ocidente dispõe de poucos ou nenhuns mecanismos para desafiar ou inverter os progressos alcançados pelo BRICS. A sua má gestão global, da Ucrânia a Gaza, está apenas a tornar a mensagem dos BRICS cada vez mais aceitável.

A expansão dos BRICS

A cimeira mostrou a expansão contínua do fórum. Foi a primeira vez que estados-membros como o Irão, os EAU, a Etiópia e o Egito participaram na cimeira como membros de pleno direito. A sua adesão foi anunciada na 15ªcimeira do BRICS. A 16ª cimeira, realizada em Kazan, prosseguiu o processo de expansão, tendo acrescentado 13 novos países como “parceiros”. Embora ainda não sejam membros de pleno direito, estão a caminho. Destes treze, quatro são do Sudeste Asiático. Inclui a Malásia, a Indonésia, o Vietname e a Tailândia. O Sudeste Asiático é também uma região onde os EUA, nos últimos anos, têm tentado estabelecer a sua presença. Mas na realidade, o facto de o BRICS já ter aberto as portas à futura adesão destes países significa que a política dos EUA na região para a afastar da influência da China (e da Rússia) continua a ser ineficaz. Outros países que aderiram ao fórum são a Argélia, a Bielorrússia, a Bolívia, Cuba, o Cazaquistão, a Nigéria, a Turquia, o Uganda e o Uzbequistão.

O padrão de expansão mostra definitivamente que o BRICS está a tentar manter o seu carácter global. Tem membros da Ásia, África, Ásia Central e Médio Oriente. Com a inclusão da Turquia como país parceiro, o BRICS entrou agora parcialmente na Europa e na NATO também.

A perspetiva dos BRICS

Talvez ninguém pudesse ter explicado melhor a perspetiva dos BRICS do que o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed. Porquê? Ahmed já foi um aliado próximo do Ocidente. Em 2019, foi também galardoado com o Prémio Nobel da Paz - um prémio que frequentemente é atribuído a pessoas estreitamente integradas na visão ocidental do mundo. Cinco anos mais tarde, quando Ahmed se encontrou com o presidente russo, parecia um homem completamente diferente, que começou a sua reunião com o presidente russo felicitando-o – em vez de fazer uma crítica aos EUA e aos seus aliados na Europa e na América do Norte - “por manter a resiliência económica durante um período difícil”. Este período não foi fácil para a Rússia, mas sob a sua liderança conseguiu manter a resiliência económica que pode ser exemplar para a maioria de nós”.

Por que razão decidiu falar bem da Rússia e de Putin? Poder-se-ia facilmente chamar a atenção para a acusação que o Departamento de Estado dos EUA publicou contra o seu governo em 2022. Mas todos sabemos que tais acusações de crimes de guerra são frequentemente apresentadas apenas quando Estados (e líderes) anteriormente vassalos decidem seguir uma política autónoma, o que basicamente significa, na maioria das vezes, ir contra os EUA. Isto é importante na medida em que o BRICS está a revelar-se um espaço onde os países descontentes com a ordem mundial liderada pelos EUA se reúnem para falar de possibilidades alternativas, ou seja, a possibilidade de uma ordem mundial multipolar.

O Secretário-Geral da ONU pareceu concordar plenamente com a agenda de multipolaridade da cimeira dos BRICS quando afirmou, sem meias palavras, que:

Nenhum grupo e nenhum país pode atuar sozinho ou isoladamente. É necessária uma comunidade de nações, trabalhando como uma família global, para enfrentar os desafios globais. Desafios como o número crescente de conflitos. A devastação das alterações climáticas, a poluição e a perda de biodiversidade... O aumento das desigualdades e a persistência da pobreza e da fome... Uma crise da dívida que ameaça sufocar os planos para o futuro de muitos países vulneráveis...

É reversível?

No Ocidente, os líderes demoraram demasiado tempo a levar a sério o BRICS e o que ele representa. Agora que o BRICS surgiu como um desafio super sério, o Ocidente não tem nenhuma forma credível de o fazer recuar. É certo que a presença do Secretário-Geral da ONU na cimeira não significa muito, mas não deixa de ter um poderoso significado simbólico, na medida em que o BRICS já não é um clube exclusivo daquilo a que os decisores políticos em Washington gostam de se referir como “Estados revisionistas”. Se assim for, também a ONU é agora uma organização “revisionista”. Na perspetiva dos EUA, qualquer país ou ator internacional que não subscreva a posição de Washington é “revisionista” na medida em que procura inverter a atual ordem mundial liderada pelos EUA. No entanto, o problema com esta posição é que os Estados que não podem ser chamados estritamente de revisionistas estão cada vez mais localizados apenas na Europa. O resto do mundo parece estar a caminhar numa direção diferente.

Como já foi referido, o Ocidente liderado pelos EUA parece não ter alavancas significativas para forçar uma mudança de direção. No entanto, dispõe de opções políticas que pode utilizar para melhor. Em vez de provocar e apoiar guerras, como as da Ucrânia e de Gaza e como as que estão a ser provocadas em torno de Taiwan, os EUA estariam melhor num cenário em que mudassem esta política a favor da promoção de uma paz real. Isto exigirá que Washington aceite que a sua posição de hegemonia pode já não ser possível, nem como a realidade global de facto, nem como algo que possa escolher impor à força.

Peça traduzida do inglês para GeoPol desde New Eastern Outlook

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geopol.pt

BySalman Rafi Sheikh

Licenciado na Universidade Quaid-i-Azam, em Islamabad, escreveu tese de mestrado sobre a história política do nacionalismo do Baluchistão, publicada no livro «The Genesis of Baloch Nationalism: Politics and Ethnicity in Pakistan, 1947-1977». Atualmente faz o doutoramento na SOAS, em Londres.

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